Eu entendo que estamos entrando em território desconhecido, em que todas as regras que foram estabelecidas pela indústria já não fazem mais sentido. E, para criar um paradigma completamente novo, temos que ir devagarinho, baby steps, mudando uma coisa após a outra. A Netflix, em sí, já é uma disrupção, um formato da nova forma. Com produções próprias, como TAU, ela mostra do que se é capaz de fazer quando se recebe liberdade de criação.

Citei o baby steps porque não se cria algo totalmente inovador logo de início. Embora o filme tenha um conteúdo incrivelmente reflexivo, ele é vendido em seu trailer como um suspense/ação/terror. Mas tudo bem, a maneira de vender um conteúdo psicológico questionador que gere interesse imediato do consumidor ainda é desafiador, mas vamos chegar lá. O importante agora é que as pessoas assistam Tau. Se é por meio de um marketing um tanto sensacionalista no momento, eu aceito. Mas te digo aqui e agora que essa trama traz muito mais que isso.

O filme conta a história de uma garota, Julia (Maika Monroe), que é sequestrada e feita de cobaia por um inventor para desenvolver um programa de inteligência artificial chamado Tau. E, se você assistiu o trailer, a maioria daquelas cenas representam o setup do ambiente, a primeira meia hora da narrativa. Depois é que começa a ficar realmente interessante. O que a produção do filme conseguiu fazer foi que nós aceitássemos a conexão, e até mesmo o amor, de uma garota com um triângulo na parede; ao mesmo tempo que retira tudo aquilo que consideramos “humano” do único outro personagem vivo principal da narrativa. E, claro, questiona outros trocentos conceito no meio disso.

Tudo começa com duas perguntas (que é o núcleo de qualquer boa reflexão): “Eu sou uma pessoa?” e “O que significa ser uma pessoa?”. Esse é o começo da conexão de Julia com Tau. Quanto mais os dois conversam, mais território comum eles encontram. A busca de ambos é a liberdade, seja do cativeiro ou da programação (e não é a mesma coisa?), e eles só poderão chegar lá através da troca de conhecimentos e habilidades. As emoções, normalmente ligadas apenas à humanidade do ser humano, são retratadas como algo pré-concebido a todas as coisas, que apenas são acionadas por meio das informações recebidas. A inteligência artificial de Tau demonstra felicidade e satisfação quando lhe é dado o conhecimento dos assuntos que interessam. Ao mesmo tempo, a parte mais devastadora da trama é quando sua humanidade é questionada e retirada.

Com maestria, a narrativa vai dando a Tau essa característica humana, conforme ele vai adquirindo informações sobre o mundo à sua volta e demonstrando interesse e carinho por Julia. Da mesma maneira, ela retira essa mesma caraterística do inventor, que liga apenas para o resultado de sua pesquisa e para a conclusão de seu projeto, sem ligar para a vida dos outros. Ao final da trama, temos muito mais empatia com Tau, a inteligência artificial representado com um triângulo e círculo na parede e com uma voz levemente irritante de Dalek, do que com o outro ser humano que está na casa. E é essa situação que nos força a pensar com mais ênfase sobre aquelas perguntas estabelecidas anteriormente, sobre o que é ser uma pessoa, sobre o que é ter humanidade, e o que isso significa.

Além de bater forte nessa temática, o filme traz ainda outra reflexão fundamental para a nova realidade que estamos criando: a auto-responsabilidade. É questionada sua obrigação com aqueles que te criaram, que te deram vida, e o quanto você deve construir por si próprio. Se você receber a informação que a sua criação, a sua programação, está sendo utilizada com fins que não são bons para o todo, você teria a força e o dever de mudá-la?

O final do filme é emocionante e, embora um pouco previsível, dá um fechamento para a lógica que foi construída. Tau começa a ficar louco por mais conhecimento quando descobre que há todo um mundo além da casa que ele vive, na qual ele questionava: “Isso é tudo que existe?”. Essa é a mesma pergunta que fazemos quando temos o espírito livre quando crianças – e, talvez forçadamente, quando nos “tornamos adultos responsáveis” atolados com responsabilidades angustiantes. Quem sabe essa pergunta seja a única que importe.

Tau é o primeiro longa dirigido por Federico D’Alessandro, mais conhecido por seu trabalho no departamento de arte em vários filmes da Marvel, Eu Sou a Lenda, A Múmia e outros. O roteiro ficou por conta de Noga Landau, a qual escreveu vários episódios da série The Magicians. O clima sci-fi se espalha ainda mais com o camaleão Gary Oldman, que faz a voz de Tau, e a trilha sonora de Bear McCreary, que criou os ambientes sonoros de Battlestar Galactica, Caprica, Eureka, Defiance, Outlander, e outros.

O gênero da ficção científica sempre foi atraente por possibilitar a criação de mundos e situações alternativas, levando a questionar aquela realidade e, consequentemente, a nossa própria. Tau performa de maneira genial dentro dessa proposta.