Nós, seres humanos, adoramos atestar nossa humanidade. No entanto, num paradigma velho e sem sentido, parece que essa humanidade só é possível para “nós” se algum “outro” não a possuir. Esse “nós” e “eles” aparece diariamente em múltiplas e infinitas dicotomias. Na ficção científica, o par de oposição mais comum é “seres humanos – extraterrestres”. Quando algo ou alguém não terrestre, não identificado, aparece, o caos reina no mundo dos seres humanos. Sabe aquela frase que pode ou não ser de Freud? “Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”? É bem isso. Projetamos nos outros a visão que temos de nós mesmos – e quando esse outro é um ser extraterreno, temos uma tela branca bastante grande para projeções. Com humor, linguagem coloquial e uma escrita que flui, Hank Green nos traz um livro extremamente relevante em nossos dias atuais. Recheado de referências pop culturais e uso das redes sociais, Uma Coisa Absolutamente Fantástica é o livro que você quer ler nesses tempos de mudança.

April May é uma garota como eu e você, querida geração Y, que sabe que está aqui para fazer algo grande, que quer falar sobre as coisas que não estão certas, mas que em vários casos acaba cedendo ao sistema vigente. April não está feliz com sua vida trabalhando numa startup “diferentona”, mas sua vida muda completamente quando ela esbarra numa escultura de robô na madrugada. Ela e seu amigo Andy postam um vídeo sobre o robô que ela chama de Carl, e é só no dia seguinte que ela descobre que seu vídeo viralizou com o furo de reportagem sobre as enigmáticas estátuas que apareceram ao mesmo tempo no mundo inteiro. Agora April precisa lidar com uma força incrivelmente poderosa e possivelmente destrutiva: a fama em tempos líquidos e instantâneos. Ah, também tem essa coisa toda que Carl pode ser um ET.

Ilustração de fã por Siena Mae (@heavybreathing.gif)

Hank, junto com seu irmão John Green (sim, o autor), ganharam muita popularidade com vídeos no youtube (VlogBrothers) e a comunidade online Nerdfighteria. Esse é o background que possibilita a sensação de conexão e autenticidade da parte de interação virtual da trama. Ele passou pelo processo de ascensão na internet, com seus prós e contras, e a descrição de todo o trabalho e planejamento por trás da postagem de vídeos traz uma camada de complexidade a mais na narrativa. É fantástico perceber como várias cabeças na internet trabalhando juntas podem criar grandes soluções, funcionando como um organismo. A parte de pesquisa na área da ciência e tecnologia também vem de forma orgânica, já que ele possui outros projetos ligados aos temas.

Ilustração de fã por Rosemary Valero-O’Connell (@hirosemaryhello)

Esse é o primeiro livro de Hank, o qual surpreende com uma narrativa divertida em passo rápido que prende o leitor. Perdi algumas horas de sono durante dias porque não conseguia parar de ler o livro antes de dormir (o famoso “só mais um capítulo”). Sua escrita me lembrou as obras de Douglas Adams, que consegue abordar assuntos densos de uma maneira descontraída e compreensível – além de pensamentos sobre ética e moralidade somos apresentados também a conceitos de química, TI, marketing e história da arte. Os personagens são multidimensionais e a escolha da narrativa em primeira pessoa se torna muito rica com reflexões sobre as ações e escolhas que estão acontecendo. Temos um aviso no começo do livro que é sempre subentendido, mas que muitas vezes nos esquecemos: a história é a visão da April, é a verdade dela com a lógica dela.

Ilustração de fã por Cam Chan (@_baomii)

A “pegada” do livro é como encaramos o diferente, e como isso demonstra o paradoxo da nossa perspectiva. Nos achamos grandiosos a ponto de pensar que temos respostas pra tudo e, ao mesmo tempo, nos achamos incrivelmente pequenos, ao sempre assumir que os aliens são mais poderosos e que querem nosso mal. Existe uma reflexão absurda de boa sobre discursos baseados na simples oposição de ideias e estimulados por ódio e medo. Aqui não dá pra afirmar que é um tema moderno, porque estamos vivendo nesse modelo há centenas de anos.

Agradecemos a Companhia das Letras e a Editora Seguinte pelo envio do livro. Foi uma surpresa muito agradável com as construções de frases tão coesas e belas e suas reflexões. Vale a pena a leitura, só tome cuidado para não se perder no tempo (ou vai com fé e se perca mesmo!). O que o encontro com o desconhecido significa pra você?

 

[Extra: Os Carls estão aparecendo por aí]

A comunidade dos irmãos Green, Nerdfighteria, possui um grupo brasileiro, o Nerdfighters Brasil. Eles seguem o propósito original: “Nerds que batalham para aumentar os níveis de “awesome” e diminuir os níveis de “suck” (coisas ruins) do mundo”. Como ler Uma Coisa Absolutamente Fantástica definitivamente aumenta o nível de awesome do mundo, o grupo está fazendo com que alguns livros e Carls apareçam nas cidades para que mais pessoas possam ter essa experiência. Quem sabe um não aparece perto de você? No instagram, siga as hashtags #RobôsPerdidos e #EncontreUCAF.