A ansiedade é caraterizada por uma intensa aflição psicológica, agonia e mal-estar psicossomático constantes em um indivíduo. No último levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 27/02/2017, foi levado em conta pelos especialistas na elaboração do documento fatores socioeconômicos: como pobreza e desemprego; e ambientais: como estilo de vida em grandes centros urbanos (algo que engloba competitividade, valores e conflitos vigentes) como principais provocadores do transtorno de ansiedade. O Brasil, inclusive, foi colocado em 1º lugar do ranking de portadores de ansiedade.

Os dados deixam claro que o transtorno muitas vezes é fruto da soma entre o ambiente que nos encontramos, os estímulos que extraímos dele, a necessidade de se manter (econômica e pessoalmente) e arestas de nossas personalidade que não se encaixam no contexto em que estamos inseridos. É um problema que, por mais que afete individualmente, supera tal condição para se tornar um problema público onde tanto o indivíduo quanto o coletivo devem atuar para que seja sanado, ou pelo menos controlado.

A cultura, como grande espelho social, produziu em 2008 uma das obras mais acessíveis e ao mesmo tempo mais completas sobre o assunto.


Kung Fu Panda, de Mark Osbourne e John Stevenson, dos estúdios Dreamworks, conta a história do panda Po, um outsider que sonha em ser treinado pelo lendário mestre Shifou, e assim se tornar um mestre do kung fu. Após uma série de eventos onde Po é tido como o escolhido para trazer a paz ao seu vale, ele realiza o sonho de entrar no famoso Dojo do mestre; mas suas expectativas são pulverizadas pela realidade: Po é desprezado por sua forma física pelos colegas (os lendários 5 furiosos) e pelo próprio mestre. Porém, tudo muda quando todos sabem que um ex-discípulo de Shifou, seu primeiro aluno Tai Lung, está voltando para se vingar do último que o iludiu no passado. Sendo Po a única e inacreditável alternativa para derrotar Thai Lung, mestre e discípulo precisam evoluir para que o destino seja comprido.

O sub-gênero de artes marciais (incluso no gênero cinematográfico de ação) tem um grande histórico de exteriorizar a necessidade humana de superar suas falhas a fim de encontrar glória e paz interior. Clássicos como Karate Kid (1984), Herói (2002) e O Tigre e o Dragão (2000) são os melhores exemplos. Contudo, parece sempre haver uma unilateralidade no indivíduo a ser mudado: É sempre o discípulo.


Kung Fu Panda quebra esse clichê ao colocar não apenas seu protagonista com arestas a serem polidas, mas também todo aquele universo e suas regras preconceituosas oriundas de uma elitização social disfarçada de testes de capacidade. O mestre Shifou entra na história não propriamente como um vilão (mesmo que indiretamente seja o causador de toda a situação instável da trama), mas sim como alguém condenado a pagar por seus atos severos.

Para compreender como a ansiedade é formada, se comporta e como é resolvida, é necessário ver como ela atua nos três personagens principais da animação: Po, Shifou e o próprio Thai Lung.

No antagonista oficial, Thai Lung, a ansiedade é gerada durante seu treinamento. Sempre estimulado a “treinar até meus ossos quase se partirem”, ele foi doutrinado por Shifou de que seria o escolhido a receber o Sagrado Pergaminho do Dragão, que segundo as lendas, traria o conhecimento ilimitado do universo. Porém, no dia de seu teste, ele não foi considerado digno.


Olhando na busca por consolo para Shifou, que nada podia fazer já que não podia contrariar a decisão de seu mestre Oogway, Thai Lung sofreu um grande choque na percepção de sua trajetória de vida. Naturalmente, a fúria e incompreensão subiram-lhe a cabeça. Munido do treinamento perfeito, tornou-se uma ameaça e acabou sendo relegado ao ostracismo. Lá, passou 20 anos ruminando pensamentos de vingança e de tomar a qualquer custo o pergaminho, tornando-se irreversível sua tendência a violência e insensatez. Como não poderia ser diferente, o personagem apenas é impedido de propagar seu ciclo de destruição através de sua própria extinção.


No protagonista Po, a ansiedade vem de sua baixa auto-estima e dos estímulos desanimadores que recebe dos ambientes em que se insere, dos seres com que se relaciona e da grande pressão de ser o Dragão-Guerreiro (terminologia para o escolhido). Desacreditado, zombado e até mesmo humilhado por seu jeito e inabilidades, o personagem apenas acha refúgio na alimentação compulsiva (o que pode ser considerado outro transtorno). O panda tem suas fraquezas jogadas em sua face o tempo todo, logo sabe muito bem como elas são e seu potencial destrutivo, mas é atormentado por não saber como ao menos começar a tentar resolve-las.


O método usado por Shifou para treina-lo é genial. Ele usa a principal válvula de escape do panda, a comida, para estimula-lo no treinamento; com isso, Po pode não saber o caminho correto, mas o esforço para alcançar a comida o ajuda a continuar tentando até que consegue e passa para a próxima lição sucessivamente. O resultado é um guerreiro equilibrado pela noção otimista de suas habilidades arduamente conquistadas, mas humilde e realista por conhecer suas falhas (algo claramente ausente no caráter de Thai Lung). Não por acaso, Po sabe que seu treinamento está completo quando o mestre lhe oferece um pastel; que ele nega dizendo estar “sem fome”.


E chegamos ao grande pivô de tudo, o mestre Shifou. Caracterizado inicialmente pelo roteiro como alguém excessivamente pragmático e controlador, chegando até a ser manipulador, características reprovados por seu próprio mestre; temos alguém cuja a impessoalidade ligada à sua posição de poder não o deixa compreender ou admitir suas falhas. Por baixo da carapaça autoritária, não imaginamos que a pequena raposa guarda um profundo remorso que lhe tira a paz interior. O caos que habita os pensamentos do grande mestre é oriundo de sua falha para com seu primeiro aluno; porém existe um detalhe seminal: Thai Lung além de ser o primeiro aprendiz, possuía uma relação de pai-e-filho com seu mestre, visto que fora deixado a sua porta ainda bebe.

Munido de amor paternal, aquele que opta por ignorar os defeitos da prole e consequentemente a priva de conhecer suas limitações, Shifou criou um monstro que mesmo não presente sempre lhe atormenta. O mestre culpou sua devoção sentimental pela emergência de Thai Lung, porém, não percebeu que foi essa mesma empatia que lhe possibilitou exigir dele a perfeição técnica, algo não adquirido com os 5 Furiosos (vide a derrota destes contra Thai Lung). A empatia do mestre por seus discípulos teve de ser reconquistada com Po, alguém que o fez rever toda a sua conduta profissional e pessoal, que exigiu uma metodologia de treinamento totalmente diferente, alguém que trazia falhas a mostra, e cujo a solubilidade residia não na eliminação destas, e sim em um reaproveitamento de esforços. A mesma empatia que em dose irracional criou Thai Lung, em dose realista criou Po, e com o triunfo deste ao final do filme, Shifou finalmente pode ter paz interior e redenção.


Através desse grande trabalho de animação e roteiro da Dreamworks, notamos que a ansiedade advém do conjunto entre o ambiente depreciativo onde nos inserimos e sobre nossa ignorância de nossas próprias falhas e limitações: fatores amplificados por nossa arrogância de achar que somos imunes e invencíveis perante tudo; ou de nossa total falta de confiança que nos faz acreditar que somos fracos demais para nos curarmos. Contudo, ela necessita que o portador tenha alguém que o compreenda, que o respeite e que o instigue a melhorar, pois uma vez adentrado nela, o caminho de volta pode parecer inexistente ou pode ocorrer até mesmo de o portador não saber como chegou ali se não houver ninguém que mostre isso a ele. Em essência precisamos de ajuda para nós mesmos nos ajudarmos.

Não por acaso, o Sagrado Pergaminho do Dragão, receptáculo do conhecimento ilimitado, é apenas uma folha dourada que reflete a imagem de quem o vê, mas que para tê-lo em mãos, é necessário que um mestre lhe entregue.

________________________________________________________________________________________________
 Sobre o autor: Yuri A.F Marcinik é de Ponta Grossa, Paraná, estudante de Bacharelado em Jornalismo na UEPG, fotógrafo e amante do cinema desde que se conhece por gente.