Fazer pós-graduação em Antropologia Cultural me pareceu uma boa ideia. Na minha busca para descobrir a razão das pessoas agirem da maneira que agem (e que muitas não as fazem felizes), já havia passado pela psicologia analítica, e a antropologia parecia ser um bom complemento. Obtive muitas respostas analisando a psique do ser humano, mas eu sabia que haviam outros fatores para serem considerados; a cultura definitivamente era um deles.

Entrei na pós sem ter muita certeza do que encontraria alí, e o resultado foi incrivelmente positivo. Comecei a amar a antropologia cada vez mais desde a primeira aula. A disciplina indisciplinada. Aquela que não pode ser explicada em poucas palavras. O estudo que se enfia em qualquer assunto e quer destrinchar cada conceito envolvido. A antropologia me ensinou a questionar tudo que é considerado como “natural”, e eu a amei por isso. Ela me disse que TUDO é uma construção.

Nos primeiros módulos, o objetivo era conhecermos a história da antropologia e os nomes que se destacaram nessa área de pesquisa. O trabalho no final do conteúdo envolvia escolher dois antropólogos e falar sobre suas vidas e obras. O mais fácil era pegar duas pessoas da mesma época com pensamentos semelhantes ou duas mais separadas pelo tempo para demonstrar a evolução da disciplina, mas eu tive uma intuição diferente. Como vim do Jornalismo, meu conhecimento nessa área era muito básico, mas com a apresentação geral de cada personalidade senti que havia duas pessoas que viveram em momentos distintos, mas que possuíam uma visão parecida. A intuição me mandou escolher Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e Bruno Latour (1947), e quanto mais eu pesquisava sobre eles, mais conexões eu encontrava.

Além de relacionar os dois, resolvi também fazer isso em cima da trama icônica de Douglas Adams: O Guia do Mochileiro das Galáxias. Sim, a visão que une seus pensamentos é a visão sistêmica ou holística da vida, e o livro de Adams é o ambiente perfeito para demonstrar isso. Eu amei fazer essa pesquisa e escrever esse artigo, e sempre quis que ele vivesse além dos limites acadêmicos. Por isso, deixo-o aqui no mundo maravilhoso da internet, livre para encontrar suas próprias coincidências e improbabilidades. O artigo é de 2015, mas continua extremamente relevante. Espero que vocês gostem da leitura no mesmo nível que gostei da sua produção.

Os Antropólogos no Fim do Universo:
uma análise dos trabalhos de Claude Lévi-Strauss e Bruno Latour seguindo a trama do livro O Guia do Mochileiro das Galáxias

Tudo começou em uma manhã ensolarada na Inglaterra. E na França também.

Arthur Dent é o protagonista na trama de O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams. Ele morava nos limites de uma vila na Inglaterra, e se viu preocupado quando, no dia anterior, descobriu que o conselho municipal queria derrubar sua casa para construir um desvio no lugar dela. Aparentemente, a obra estava planejada há meses, e o projeto estava à disposição de todos na Secretaria de Obras caso houvesse sugestões ou reclamações. No entanto, nada disso foi realmente divulgado, e Arthur achou o projeto dentro de um arquivo trancado, num porão sem luz.

O protagonista iria se rebelar contra os caminhões parados em frente à sua casa, e iria achar uma coincidência incrível que, algumas horas mais tarde, naves espaciais de uma raça alienígena burocrática chamada Vogon estariam anunciando para os humanos que o planeta Terra estava prestes a ser destruído. Uma via expressa hiperespacial seria construída ali, e o projeto estava disponível para os humanos há 50 anos terrestres em Alfa do Centauro.

Se Arthur passasse menos tempo no bar e mais lendo sobre cultura e antropologia, ele entenderia que a situação até que fazia sentido, uma vez que “Se há leis em algum lugar, deve havê-las por toda a parte”¹. Essa frase foi cunhada por Edward B. Tylor, considerado o pai do conceito “moderno” de cultura e antropólogo da escola evolucionista, mesmo que, na época, a disciplina de antropologia propriamente dita não existisse. Essa escola do século XVIII via a evolução da humanidade em forma de uma escada, com os povos primitivos ocupando os degraus mais baixos e civilizações desenvolvidas, como a europeia, nos mais altos.

Desde então, a antropologia se desenvolveu e mudou seus conceitos, e um dos pensadores que mais contribuiu para um novo paradigma foi o francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Uma das suas grandes afirmações seria que não há como comparar civilizações, pois cada uma tinha se especializado em diferentes áreas. No entanto, ele se apropriaria do pensamento de Tylor para concluir em seus trabalhos mitológicos que “… basta-nos assimilar a convicção de que, se o espírito humano se mostra determinado até mesmo em seus mitos, então a fortiori deve sê-lo em toda parte”². Lévi-Strauss bebia de muitas fontes para formar seu pensamento original, mesmo se não concordasse completamente com suas ideias.

Lévi-Strauss fez uma revolução no século XX ao mostrar novas visões de mundo para uma sociedade etnocentrista ignorante de muitos fatos. Em contrapartida, o antropólogo contemporâneo Bruno Latour (1947) fará sua própria revolução, mas em uma sociedade completamente diferente daquela de seu antecessor. A sociedade do topo da escada de Tylor se diz, atualmente, moderna e culta, e tem tanto acesso a múltiplos fatos devido à tecnologia, que acaba por acreditar naqueles mais populares e se perde na desinformação.

Lévi-Strauss mostrou com seu trabalho que é possível ter uma organização no meio do caos, que diferentes povos são conectados apesar de sua raça ou cultura e que, na ciência, não pode haver verdades estabelecidas. Latour irá concordar com a visão da “verdade” de Lévi-Strauss, e dedicará seus estudos para desconstruir fatos que consideramos irrefutáveis e sólidos, e para encontrar a razão de os considerarmos dessa maneira. A ciência e tecnologia são fatores que ganham vida própria, e o autor nos mostra que, em seu núcleo, aceitar nossos fatos científicos não é tão diferente das tribos, pesquisadas em séculos anteriores, que aceitam fatos descritos por seus pajés.

Os dois antropólogos podem estar separados por diferentes épocas e estudos, mas concordam em muitos aspectos. Ambos fazem seus leitores levarem em conta fatos que nunca haviam considerado. Arthur também irá considerar novos fatos, seja perante de outras raças alienígenas ou ao ver a realidade sendo retorcida diante de seus olhos. A dica para sobreviver a tudo isso é simples: Não entre em Pânico.

Os Pesquisadores de Campo

Assim como todos os outros habitantes do planeta Terra, Arthur teria sido vaporizado pelas armas Vogon se não fosse seu amigo Ford Prefect. Até então, Arthur achava que Ford era um homem comum, um ator desempregado. Mal sabia ele que seu amigo do peito era, na verdade, um pesquisador de campo de outro planeta, que acabara ficando preso na Terra durante os últimos 15 anos. A missão de Ford era conviver com os humanos para poder aumentar o verbete do planeta na enciclopédia O Guia do Mochileiro das Galáxias. Coincidentemente, essa era quase a mesma missão de Lévi-Strauss nos anos 30, só que em escala ligeiramente menor.

Em 1938, o jovem professor que chegou no Brasil com um grupo francês para dar aulas na recém-criada Universidade de São Paulo estava numa expedição etnográfica para estudar os nhambiquaras. Diferente das expedições comuns, as quais envolviam o pesquisador parado numa tribo durante longos períodos, a equipe de Lévi-Strauss percorreu uma distância enorme pelo Brasil, ficando poucas semanas em apenas um lugar. O resultado parecia ter sido um fracasso, mas a análise rápida de meia dúzia de culturas indígenas diferentes possibilitou que Lévi-Strauss pudesse traçar laços comuns a todas essas culturas, no lugar de apresentar peculiaridades de apenas uma. Esse tipo de pensamento – de achar padrões na diversidade – é o que o faria ser o fundador do Estruturalismo algumas décadas mais tarde.

Influenciado pelo surrealismo, pela estética, pela música, pela linguística e até pela observação de um grupo de dentes-de-leão³, Lévi-Strauss desenvolveu toda uma abordagem que “procurava desvendar as simetrias ocultas que se encontravam sob todas as culturas”4. Tudo se encaixou quando ele ficou próximo do linguista russo Roman Jackobson e do suíço Ferdinand Saussure. Numa comparação de estudos de parentesco com a fonologia, Lévi-Strauss colocou as relações de casamento num sistema de pares de oposição.

Nos anos 60, Lévi-Strauss estava em seu auge, atingindo uma fama mundial. Vitórias consecutivas na publicação de seus últimos livros colocaram a antropologia como disciplina reconhecida em todas as partes e seu rosto em várias entrevistas, documentários e um ensaio fotográfico na revista Vogue5. Essa fama começou em 1949, com o livro As Estruturas Elementares do Parentesco. Descrito como o divisor de águas no campo das humanas, tal como A Interpretação dos sonhos, de Freud, e O Capital, de Marx, o autor expôs, entre outras análises, suas ideias de dicotomias de parentesco e leis subentendidas matrimoniais. Desse modo, um “conjunto muito complexo de usos e costumes à primeira vista absurdo foi redutível a um sistema significativo de um pequeno número de princípios simples”6.

Em 1955, Lévi-Strauss achou não estar disputando uma vaga acadêmica no Collège de France, e decidiu escrever Tristes Trópicos, uma mistura de literatura com etnografia sobre suas expedições no Brasil. Essa abordagem fez com que a etnografia virasse um assunto mais acessível àqueles que não eram pesquisadores, e acabou por colocar no mapa a disciplina da antropologia. E, para finalizar, em 1959, Antropologia Estrutural reunia um conjunto de ensaios com a reinterpretação metodológica do autor. “Os outros tinham errado em considerar os termos, e não a relação entre os termos7. Além de oferecer um rico conteúdo para pesquisadores, os textos combatiam o racismo e preconceito.

O Estruturalismo era a nova onda em Paris, sendo aplicado não apenas na antropologia, mas em outras áreas, como a cinematográfica (por exemplo, Raymond Bellour analisou cenas de filmes clássicos, como Psicose, fotograma por fotograma para fazer um paralelo com o estruturalismo; 2001: Uma Odisseia no Espaço reflete a influência lévi-straussiana na produção de filmes da época). A estética estruturalista era “simultaneamente moderna e antiga, religiosa e ateia, fria e romântica, […] sinalizava um afrouxamento, uma descarga de tensão espiritual – não por meio de um reconforto tranquilizador, mas como resultado de se estar lançado no vazio”8.

Ao mesmo tempo que Lévi-Strauss estava na mídia promovendo suas ideias, uma virada ontológica trazia o problema de representações, de pensar mais profundamente o “nós”, o “eles” e as “verdades” que nos separam. O STS (Science Studies) começou a tomar forma, e cultura e natureza foram mais questionadas do que nunca. A linha se interessava nas relações entre o saber científico, os sistemas tecnológicos e a sociedade – os fatos científicos eram vistos, por exemplo, como produtos dos cientistas, no lugar de representações objetivas da natureza9. Bruno Latour desenvolve seu trabalho com base nessas indagações a partir da década de 70.

As Cabeças da Ciência

Como já havíamos estabelecido, Ford Prefect não era humano, e deu um jeito de pegar uma carona clandestina numa nave Vogon junto com Arthur. Infelizmente, a empreitada toda acaba mais tarde com os dois sendo expelidos da nave para o vácuo do espaço. Os dois são salvos segundos depois pela nave Coração de Ouro, uma criação única por usar o gerador de improbabilidade infinita como propulsor; ela viaja muito rápido, mas deixa um rastro de coincidências e coisas improváveis por todo o caminho. No dia em que ela seria revelada para o universo, Zaphod Beeblebrox a roubou. Zaphod, atual Presidente do Governo Imperial Galáctico, parece um ser humano comum, mas tem duas cabeças. Quem também tem duas cabeças é Jano, deus romano com duas faces que Bruno Latour usa para ajudar a explicar o modo de desconstruir objetos e verdades que temos como certas.

Em um seminário internacional realizado em 2010, Latour explica que ao olhar qualquer objeto, temos a sensação de algo concreto, frio e bem delimitado. Até que alguma coisa acontece, um acidente ou catástrofe, e então você descobre uma pilha de entidades ocultas que estavam sustentando aquele objeto. Ele dá o exemplo do caso do ônibus espacial Columbia – todos viam um objeto concreto voando pelo espaço, no entanto, quando acontece um acidente e o ônibus explode em 2003, você percebe que ele só voava seguramente por causa da NASA e seu complexo órgão organizacional. Ao investigar a causa do acidente, a ação de um objeto tecnológico foi redistribuída à uma complexa rede humana, a qual prova ser tão importante quanto materiais de construção e equações.

Latour é um dos primeiros a desenvolver a teoria do ator-rede (ANT), a qual leva em consideração igualmente aspectos humanos e não-humanos; cada um agindo como um ator determinante numa grande rede de relações. Ele busca o coletivo – “tudo, e não dois separados […]”10.

Esses objetos certos e indubitáveis são chamados de caixas-pretas por Latour. São um conjunto de comandos complexos demais para serem analisados naquele formato. No entanto, se a rede-ator for utilizada e aquela ciência for analisada enquanto ainda estava em construção, a caixa pode ser aberta, e o processo pode ser visto claramente. “Incerteza, trabalho, decisões, concorrência, controvérsias, é isso o que vemos quando fazemos um flashback das caixas-pretas […]”11. Ao fazer esse flashback, uma figura se forma com duas faces – uma com a feição severa representando a ciência pronta e outra vivaz representando a ciência em construção. As duas faces de Jano sempre estarão falando ao mesmo tempo com frases contraditórias como “Acate os fatos sem discutir” e “Descarte os fatos inúteis”12.


Esse processo de análise pode trazer muitos benefícios, e um deles é conseguir enxergar que os fatos são criados. No livro Jamais Fomos Modernos, Latour cita o filósofo Thomas Hobbes: “O conhecimento, assim como o Estado, é produto da ação humana”13. Ele segue afirmando que o motivo que consideramos nossos fatos à prova de qualquer dúvida é que o “construtivismo” de Deus é estendido ao homem: “Deus conhece as coisas porque ele as cria. Nós conhecemos a natureza dos fatos porque os elaboramos em circunstâncias perfeitamente controladas”14. Dessa maneira, a imperfeição de produzir fatos em laboratórios que só possuem valor local se transforma a vantagem de jamais serem mudados; serão caixas-pretas a partir de então.

Uma breve demonstração do processo de abrir uma caixa-preta pode ser vista em seu outro livro, Ciência em Ação. Ele descreve o processo de criação da imagem tridimensional da dupla hélice de DNA e do desenvolvimento do computador Elipse MV/800. Em 1985, esses dois objetos são concretos e confiáveis; ninguém nunca irá olhar para a imagem de DNA e questionar se ela está correta ou para o computador e pensar que ele não vai funcionar. No entanto, em 1951, o ácido desoxirribonucleico é apenas uma foto obtida por raios X envolvida numa corrida para ver quem divulga antes um formato que seja de consenso comum e, em 1980, o computador era apenas um protótipo começando a despertar o interesse do departamento de marketing e lutando contra concorrências e desenvolvedores de chip. Ao ler todo o relato, podemos ver que objetos e fatos são apenas um resultado que foi consequência de várias circunstâncias, e não necessariamente uma descoberta natural.

O próprio Lévi-Strauss pode entrar na categoria de criar caixas-pretas com seus sistemas. Uma das pessoas que criticaram As Estruturas Elementares do Parentesco foi o antropólogo Edmund Leach, afirmando que as leis de Lévi-Strauss só poderiam ser atendidas “adotando-se um decidido desdém pelos fatos históricos e etnográficos”15. Fica claro que a presença do autor sempre está nas interpretações e conclusões dos estudos científicos. Por essa razão, alguns sociólogos argumentam que acreditar em fatos científicos seria semelhante a tribos acreditarem em fatos descritos por feiticeiros16 – a única diferença  seria que os cientistas possuem um método mais “crível” para a nossa sociedade do que os feiticeiros (que eram “críveis” para aquela sociedade).

Como então podemos chegar o mais próximo da verdade? Latour entra em seu conceito de simetria, o qual envolve considerar vários olhares sobre o mesmo tema para relativizar a presença do autor. Ele também fala em controvérsias, com uma ciência cheia de atores que questionam competências e veracidades, podendo tornar um fato esquecido ou a verdade mais imbatível.

Lévi-Strauss também se importava com a verdade definida por vários relatos, mas, para ele, a verdade sempre chegaria em termos absolutos. Ele compara o mito com a história; cada narrador que conta um mito, sempre conta de forma levemente diferente e, se formos considerar, por exemplo, a Revolução Francesa, cada participante terá uma óptica diferente17. Mesmo com tantas variantes, podemos saber o que foi a Revolução Francesa porque todos os relatos referem ao mesmo país, mesma época e mesmos acontecimentos, podendo-se ter uma ideia geral. Ele não se incomodava tanto com a ideia de que a “verdade” poderia ser formada apenas de consensos.

Conexões Atômicas e Mitológicas

Zaphod, diferente de Jano, não tinha das melhores personalidades nem pensava arduamente nas variantes do mundo, mesmo se demonstrando muito inteligente em certas horas – mas muito burro em outras. Ele viajava na Coração de Ouro com outros dois tripulantes: Trillian e Marvin. Trillian era uma garota da Terra que resolveu viajar com Zaphod para conhecer o espaço; Marvin era um robô de última geração com o novo recurso PHG (Personalidade Humana Genuína), o que lhe tornava extremamente depressivo diante das possibilidades do universo, do resultado das criações humanas e da capacidade de sua inteligência não sendo utilizada por ter que fazer ações comuns.

Quando Arthur e Ford se depararam com Zaphod e Trillian, ficaram absortos com as “coincidências” que os juntaram: Ford era amigo de infância de Zaphod; Arthur conheceu Ford na Inglaterra, mesmo local em que viu Zaphod numa festa – Arthur estava tentando conversar com uma garota que era um barato, mas Zaphod se intrometeu e a “roubou” com um papo que era de outro planeta. A garota era Trillian e o número de telefone da casa em que estava acontecendo a festa era 276.709 – dois elevado a esse número é a probabilidade de alguém ser salvo em pleno espaço por outra nave em 30 segundos. O narrador descreve:
“Seus quatro passageiros estavam intranquilos, sabendo que haviam sido reunidos não por sua própria vontade ou por simples coincidência, e sim por uma curiosa perversão da física – como se as relações entre pessoas fossem regidas pelas mesmas leis que regem o comportamento dos átomos e moléculas” (2009, p. 111)

Era essa sensação que Lévi-Strauss tinha quanto à complexidade dos mitos; não que ele achasse exatamente uma perversão da física, mas algo com uma importância tão grande que ele dedicaria alguns anos de sua vida para escrever sua obra mais ambiciosa: as mitológicas. São quatro volumes (O Cru e o Cozido, Do Mel às Cinzas, A Origem dos Modos à Mesa e O Homem Nu) publicados entre 1964 e 1971, que analisam mais de 800 mitos indígenas e como eles se relacionam, isolando as noções abstratas e encadeando-as em proposições. O ponto de partida é um mito dos Bororo do Brasil Central, e a investigação do contexto etnográfico e ligações justificadas de ordem históricas ou geográficas irá conduzir o leitor para sociedades vizinhas até chegar às regiões setentrionais da América do Norte.

Lévi-Strauss gostava dos mitos por representarem atos de criação espontânea. Ele argumentava que os modelos das estruturas de parentesco eram corrompidos por todos os tipos de fatores sociológicos, mas o mito era puro: “Em certo sentido, o mito era a mente, desvendada por meio de suas operações instintivas”18. Dessa maneira, o antropólogo analisava o pensamento humano em seu estado mais primordial, conseguindo transformar muitas culturas e povos diferentes que nunca tiveram contato direto em algo único e universal. Mas, por mais árduo que fosse o estudo de Lévi-Strauss, não era possível encontrar todas as ligações: “Os temas se desdobram ao infinito. Quando acreditamos tê-los desembaraçado e isolado um dos outros, verificamos que, na verdade, eles se reagrupam, atraídos por afinidades imprevistas”.

A Resposta da Vida, do Universo e Tudo Mais

Uma pessoa poderia se perguntar a razão de passar tanto tempo pensando sobre relações de parentes de tribos indígenas, como se constrói um fato científico ou conexões entre mitos. Uma pessoa poderia se perguntar a razão da importância de termos respostas para as coisas, ou pelo menos chegar o mais perto possível de respostas. Com certeza o Ocidente teria um conjunto variado de explicações, o Oriente outro conjunto variado. O livro de Douglas Adams também apresenta sua explicação, uma que provavelmente não estaria presente em nenhuma das outras listas.

Uma parte do cérebro de Zaphod Beeblebrox está bloqueada. Ele descobriu que ele mesmo havia feito um procedimento cirúrgico para não ter acesso àquela área. O motivo é um mistério, mas é por isso que ele faz coisas que não sabe porque está fazendo. Como se eleger para a presidência da galáxia, como roubar a Coração de Ouro, como ter uma intuição para ir à certa localização. Essa intuição leva nossos heróis até uma área improvável de encontrar um planeta, mas lá está Magrathea. Zaphod acha (ou pensa que acha) que a razão de ir até lá é para se apossar das riquezas que o planeta abandonado e dito como lenda guarda. No entanto, eles descobrem que o planeta abrigava seres hiperinteligentes de outra dimensão.

Em sua terra natal, eles ficaram cansados das discussões incessantes a respeito do significado da vida e construíram um supercomputador para dar uma resposta para a vida, o universo e tudo mais. Demorou sete milhões e quinhentos mil anos para o computador chegar num resultado, e a resposta foi 42. Foi então que perceberam que a resposta estava certa, mas a pergunta nunca foi bem colocada – na verdade, eles nem sabiam direito qual era a pergunta. Então tiveram que construir um computador de tamanha complexidade que a própria vida orgânica era parte da matriz operacional para descobrir qual era a pergunta fundamental. Esse computador era o planeta Terra, e ela foi destruída cinco minutos antes de chegar no resultado final.

Essa seria uma opção plausível, mas muito improvável, da nossa obsessão por encontrar respostas sobre a vida. A escritora Simone de Beauvoir fez uma resenha quando As Estruturas Elementares do Parentesco foi publicada, afirmando que, “para além dos diagramas desconcertantes está o mistério da sociedade como um todo, o mistério da própria humanidade”19. Analisando complexidades de tribos indígenas, Lévi-Strauss conseguia mostrar as complexidades das sociedades “modernas” também, porque, no núcleo, tudo está relacionado.

Mas, diferente dos seres da outra dimensão, Lévi-Strauss sabia que mais importante do que a resposta, era a pergunta: “Não devemos esquecer que na ciência não pode haver verdades estabelecidas. O estudioso não é o homem que fornece as verdadeiras respostas; é aquele que faz as verdadeiras perguntas”20. E não é Bruno Latour um desses que estão fazendo as verdadeiras perguntas também? Ao entender povos ditos primitivos ou modernos, é possível entender como a vida na Terra funciona, como a mente do ser humano funciona e, para Lévi-Strauss, essa é exatamente a questão da antropologia: “o objetivo último da antropologia é contribuir para um melhor conhecimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos”21.

Tendo esses conhecimentos, podemos alcançar novos patamares; em níveis práticos, ter uma sociedade mundial que se relaciona muito melhor e evoluir no sentido mais positivo da palavra; em níveis mais etéreos, provavelmente precisaremos dos cinco minutos metafóricos para chegar na resposta.

Para o Futuro e Além

Ao terminar de ler o livro de Adams, ficamos aliviados ao saber que todos escaparam bem de Magrathea (os seres queriam o cérebro de Arthur para tentar terminar o experimento de bilhões de anos e a polícia estava atrás dos ladrões da Coração de Ouro) e ficamos curiosos para saber o que o futuro lhes reserva. Ao terminar de ler este artigo, espero que fique claro os termos gerais das ideias de Claude Lévi-Strauss e Bruno Latour e como elas se relacionam.

Mesmo com algumas diferenças de pensamento e metodologia, ambos trabalham para uma coletividade de ideias. Latour critica como a sociedade tende a separar conceitos e categorizar áreas estudo. “Nossa vida intelectual é decididamente mal construída”22. O sonho de Lévi-Strauss era uma convergência entre as áreas do conhecimento, uma ruptura da atmosfera intelectual dominada na época por filosofias do existencialismo e fenomenologia. No livro O Poeta no Laboratório, Patrick Wilcken faz a seguinte afirmação sobre o trabalho de Lévi-Strauss:

Prometendo ciência, Lévi-Strauss fornecia uma espécie de antropologia zen – mente, mito e universo em comunhão estrutural, sobrepondo-se, interpretando-se, refletindo-se mutuamente. Não havia solução final; apenas senso de unidade, demonstração de interconectividade última, um nirvana de pensamento e natureza” (2011, p. 279)

A linha de pesquisa seguida por Lévi-Strauss foi comparada com Freud devido à seguinte tríade: Se para Freud estava id, ego e superego, para Lévi-Strauss estava natureza, cultura e mente humana. Dessa maneira, podemos concluir que Latour também possui uma tríade, e ela se encaixa com as outras duas: simetria, redes-atores e controvérsias.

O Guia do Mochileiro da Galáxia possui o seguinte verbete: “A história de todas as grandes civilizações galácticas tende a atravessar três fases distintas e identificáveis – as da sobrevivência, da interrogação e da sofisticação”. É possível afirmar que estamos na fase da interrogação, e os dois antropólogos tornam mais fácil chegar na sofisticação.

Notas:
1. TYLOR, apud LÉVI-STRAUSS, 2004
2. LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 29
3. Patrick Wilcken descreve em O Poeta no Laboratório como Lévi-Strauss entende o princípio do estruturalismo observando um grupo de dentes-de-leão: ”A ideia de que a cultura, tal como a natureza, podia ter seus próprios princípios de estruturação – ocultos, mas em última instância determinantes, como os códigos genéticos que produzem a geometria da natureza […]”
4. WILCKEN, 2011, p. 11
5. WILCKEN, 2011
6. LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 29
7. WILCKEN, 2011, p. 156
8. WILKEN, 2011, p. 284
9. LATOUR, 2013
10. LATOUR, 2004, p. 117
11. LATOUR, 2000, p. 16
12. LATOUR, 2000, p. 21
13. HOBBES, apud LATOUR, 2013
14. LATOUR, 2013, p. 24
15. WILCKEN, 2011, p. 173
16. COLLINS; PINCH apud COLACEOS, 2009
17. LÉVI-STRAUSS, 2004
18. WILCKEN, 2010, p. 271
19. WILCKEN, 2011, p. 170
20. LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 26
21. LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 32
22. LATOUR, 2013, p. 11

Referências:

ADAMS, Douglas. O Guia do Mochileiro das Galáxias. Rio de Janeiro: Sextante, 2009

LÉVI-STRAUSS, Claude. Abertura. In:______. O Cru e o Cozido. São Paulo: Cosac & Naify, 2004

__________. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.

WILCKEN, Patrick. Claude Lévi-Strauss: O Poeta no Laboratório. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013

__________. Políticas da Natureza: Como Fazer Ciência na Democracia. Bauru: EDUSC, 2004

__________. Ciência em Ação. São Paulo: Editora UNESP, 2000

International Seminar on Network Theory Keynote – Bruno Latour. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Bj7EDMRJrbU>. Acesso em junho de 2015

COLACIOS, Roger Domenach. Latour para Historiadores: Premissas, Conceitos e Metodologia. Rio de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, N 08, Rio, 2009