Quando Godzilla surgiu nos cinemas do Japão, em 1954, o país sentia a necessidade de espantar os traumas provocados pelos dramas sofridos durante a Segunda Guerra Mundial. O monstro gigante, portanto, criado pelo mago dos efeitos especiais, Eiji Tsuburaya, era a metáfora perfeita do terror causado pelas explosões das bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki. A identificação imediata do público nipônico pelo entretenimento escapista fez surgir um subgênero que se disseminou além do cinema, e se espalhou pelos incontáveis animes e tokusatsu, introduzindo também a cultura de se criar robôs gigantes para combater tais ameaças.

Essas influências da Terra do Sol Nascente atravessaram o Pacífico e chegaram a Hollywood com algumas produções interessantes, outras… nem tanto. Entre os bons exemplares do gênero, temos o longa Cloverfield – Monstro, lançado em 2008 e com produção do cultuado J. J. Abrams, no qual o tema da destruição de uma metrópole provocada por um monstro gigante foi abordado de forma quase documental. Em 1998, foi realizada a primeira versão ocidental de Godzilla, mas sem o êxito esperado. O tão famoso monstro japonês teve uma segunda chance na América em 2014, com um resultado bem melhor que seu antecessor. No entanto, o sucesso de Kong: A Ilha da Caveira, de 2017, abriu as portas para Godzilla II: Rei dos Monstros, em 2019, e Godzilla Vs. King Kong, que será lançado em breve.

“Tenho interesse por monstros!”, sempre declara Guillermo del Toro em suas entrevistas. A filmografia do cineasta mexicano não nega. Em Blade II, ele nos deu uma visão ainda mais sombria do Caçador de Vampiros. Em seguida, o latino nos surpreendeu com O Labirinto do Fauno, e ainda nos fez conhecer o improvável herói Hellboy em dois ótimos filmes. Ele também já possui o merecido reconhecimento da Academia, recebido em 2018 por sua mórbida e lúdica fábula A Forma da Água, vencedora de quatro Oscars, inclusive Melhor Filme e Melhor Diretor. Apesar da ideia não ter sido dele, é difícil imaginar cineasta mais adequado para ter levado às telas o projeto de Círculo de Fogo, idealizado pelo roteirista Travis Beacham. Del Toro, entusiasmado com o conceito que estava sendo entregue em suas mãos, colaborou para a versão final do roteiro, e o resultado foi este primor que encheu os olhos de quem foi conferi-lo nos cinemas em 2013, obra na qual o diretor pôde revelar ao mundo a sua visão estilizada dos filmes de monstros gigantes, e, é claro, o seu amor pelo gênero.

Este primeiro longa da franquia, cujo segundo filme nem chega aos pés da grandiosidade temática aqui elaborada, nos apresenta os habitantes do planeta Terra em um futuro próximo vivendo em constante angústia diante de um drama com o qual não conseguem lidar (ecos das guerras da vida real?). No Pacífico Sul, em algum ponto da área conhecida como Círculo de Fogo – que tem esse nome devido a uma grande incidência de terremotos e vulcões – uma fenda dimensional foi aberta, por onde atravessa, de tempos em tempos, um monstro gigante que avança, provocando devastações em grande escala em diversas metrópoles à beira-mar por onde passa. Com muito esforço militarista, a ameaça era vencida, mas meses depois outra criatura surgia, e o terror continuava. “Aquilo não ia parar”, a narração em off nos alerta ainda no início da narrativa. Diante do drama constante, as nações do mundo se unem num esforço inédito e criam, em igual escala de tamanho, robôs gigantes, os Jaegers (“caçador” em alemão), para combater os Kaiju (“monstro” em japonês).

Seria mais uma história absurda e banal se não fosse a personalidade do cineasta, que impõe o seu estilo e consegue adicionar peso dramático à trama, o que faz toda a diferença. Somos então apresentados à enorme plataforma que abriga os Jaegers, onde o Marechal Stacker Pentecost (Idris Elba), comanda toda a operação. Conhecemos também o piloto Raleigh Becket (Charlie Hunnam), e Mako Mori (Rinko Kikuchi, com seus expressivos olhos nipônicos e que foi vista no filme Babel, do também mexicano Alejandro González Iñárritu), que poderá vir a ser a parceira de Raleigh no comando de um dos Jaegers, se conseguir superar um trauma de infância, que envolve um Kaiju. Os Jaegers são sempre operados por dois pilotos, e o processo de condução envolve uma conexão neural entre eles, através da qual podem compartilhar pensamentos, emoções e lembranças um do outro. As recordações de Mako nos presenteiam com uma das melhores cenas do longa. Ao vermos o referido flashback, é difícil não vir à tona em nossa mente aquela foto histórica da menina vietnamita correndo nua pelas ruas, querendo desesperadamente fugir das consequências da guerra que estavam por toda parte. Um detalhe chama a atenção nesta cena: a cor dos sapatinhos da menina, vermelho, em contraste com todo o cinza da destruição ao redor. Recurso semelhante foi utilizado por Steven Spielberg no oscarizado A Lista de Schindler, filmado quase todo em preto-e-branco, exceto por uma menininha usando um casaco vermelho, representando a inocência, andando desoladamente por entre os campos de concentração nazista.

Falando assim, parece até que estamos analisando outro drama de guerra, mas não podemos nos esquecer de que Círculo de Fogo, afinal, é entretenimento. Este, portanto, é um bom momento para falar dos alívios cômicos da produção. Charlie Day e Burn Gorman fazem dois cientistas exageradamente caricatos (um deles é a cara de J. J. Abrams, coincidência?). Contudo, apesar deles terem certa relevância na trama, é constrangedor ver algumas tentativas nem sempre bem-sucedidas de se fazer humor diante do clima ácido que o próprio filme insiste em impor, mesmo em se tratando de um blockbuster. Mas o Hellboy em pessoa, Ron Perlman, em sua quarta colaboração com o diretor, na pele de um mercador de órgãos de Kaijus, surge para descontrair em um tom um pouco mais sóbrio e talvez mais apropriado ao filme.

A estética visual de Del Toro sempre foi muito apurada. É fácil perceber sua predileção por tons amarelados e esverdeados que permeiam toda a sua obra, que inegavelmente alcançaram o ápice em A Forma da Água, e aqui não é diferente. Seja nos cenários subterrâneos, nas redomas de vidro que preservam órgãos dos monstros, na gosma brilhante que sai de seus interiores no metal desgastado dos robôs causado por suas inúmeras batalhas, ou ainda no clima predominantemente escuro, chuvoso e sombrio que se acoberta sobre quase toda a projeção. Sem contar o fato de grande parte dos combates acontecerem no mar revolto, envolto por ondas perigosamente agitadas, não há dúvidas de que estamos assistindo a um filme de Guillermo del Toro.  E nas poucas vezes que vemos o dia calmo e ensolarado, o contraste provocado por essa mudança de clima e de cores evidencia claramente o novo rumo que a trama passa a ter a partir daquele exato momento, comprovando o uso inteligente da fotografia a serviço da história.

Finalmente, as batalhas são compatíveis com o que se esperaria de criaturas e máquinas tão grandiosas, com movimentos lentos, de forma que sentimos o peso físico dos combates. Um deleite para o expectador! Claro que também há os inevitáveis clichês hollywoodianos: o discurso militarista, a contagem regressiva de uma bomba prestes a ser detonada, o suposto sacrifício de um determinado personagem, a frase: “Não morra!” dita em uma cena em que sabemos que isso NÃO vai acontecer, etc… Mas esses momentos não comprometem a – cinematográfica e literalmente – grandiosidade da experiência proporcionada por esta maravilhosa epopeia visual e sonora. Mesmo visto em casa!

Círculo de Fogo é um filme escapista, como foi Godzilla de 1954. Quase 60 anos e um oceano de avanços tecnológicos separam um filme do outro, mas a essência do subgênero “filme de monstros gigantes” permanece irretocável. Até nós, ocidentais, continuamos com a necessidade de espantar nossos medos. A diferença é que, desta vez, tivemos do nosso lado um arquiteto que sabe como ninguém lidar com essas situações. Afinal, em se tratando de monstros, Guillermo del Toro entende do assunto.