Das mil e uma funções maravilhosas do cinema, registro histórico é uma delas. O registro de uma época específica de uma sociedade, um espelho dela. A história da narrativa é apenas a superfície, já que o contexto histórico é ainda mais profundo. Vamos então falar sobre Dumbo.

Temos aqui uma história particularmente triste. De acordo com o documentário “Attenborough and the Giant Elephant“, o livro que seria comprado no futuro pela Disney foi baseado na vida de Jumbo, um elefante capturado na Etiópia em 1862, possivelmente após o assassinato de sua mãe. Ele chegou à Europa num estado lamentável, passando por Paris e depois Londres, onde se recuperou e virou uma sensação durante 15 anos por ser bem maior que os elefantes asiáticos conhecidos pela população.

Após esse período, Jumbo começou a se portar de maneira errática durante a noite, era violento e destruidor. Ele se tornava um elefante louco.

Jumbo e seu cuidador em 1885

Com medo do que poderia acontecer, o diretor do zoológico londrino vendeu Jumbo para o americano P.T. Barnum (representado no cinema numa visão positiva por Hugh Jackman, em O Rei do Show). Se achava na época que Jumbo estivesse com problemas hormonais, mas após pesquisas com os restos de Jumbo para o documentário em questão, chegou-se à conclusão que a loucura do elefante gigante seria por conta de dores inimagináveis de dente causadas pelas tortas dadas para o animal comer pelos visitantes, assim como por lesões nas articulações causadas pelo peso que carregava nas costas fazendo passeios com vários grupos. Seu cuidador era o único que conseguia acalmá-lo, fazendo uso de muitas doses de whisky. O esqueleto do elefante que faleceu aos seus vinte e poucos anos parecia mais com um de cinquenta anos. 

Jumbo virou sensação também em Nova York, mas em 1885, o pobre grande elefante foi atingido por uma locomotiva que vinha em sentido contrário enquanto ele subia em seu trem. Esse foi o final de Jumbo, um elefante de 24 anos que poderia ter atingido 60 ou 70 anos em liberdade. Barnum ainda lucrou com o corpo do animal, contando uma história heróica de como ele salvou um bebê elefante da outra locomotiva, vendeu seu esqueleto – o qual foi analisado para o documentário – e ordenou dissecar seu cadáver para continuar acompanhando o circo. O ato final da estrela foi surpreender os taxidermistas com cerca de 300 moedas em seu estômago, que provinham da aspiração do dinheiro que as pessoas davam ao seu cuidador para subir em suas costas.

Uma história infeliz que gerou muita alegria para seus admiradores e batizou os lanches americanos extra grandes. A ganância da época era algo normal, assim como o olhar maravilhado daqueles que viviam suas próprias vidas em contextos tão sofríveis que nem concebiam se colocar no lugar do outro – no lugar do animal muito menos.

Após 54 anos, a história de Jumbo tomou uma direção mais fantasiosa e agradável, se tornando Dumbo (um jogo de palavras com dumb, que seria bobo/bobinho) no livro infantil de Helen Aberson e Harold Pearl e que, em 1941, seria o lançamento de sucesso da Disney que a reergueria financeiramente.

Mas a história que faz parte do coração de muitos, inclusive desta que vos fala, continuava em seu contexto histórico deprimente. Dumbo é o filme mais curto da Disney, com 64 minutos, e bem menos desenvolvido esteticamente que seus predecessores por conta da crise financeira (e física/emocional/sentimental) do período da Segunda Guerra Mundial. Os animadores da empresa estavam insatisfeitos com as condições de trabalho, levando a uma greve; a consciência cultural da época permitia que um dos personagens se chamasse Jim Crown, nome que traz todo um pacote de ridicularização das pessoas negras e apoio à segregação racial; e a capa de dezembro da consagrada revista americana Time, que deveria trazer o elefantino sendo celebrado como “mamífero do ano”, mas foi reestruturada às pressas para poder anunciar um dos eventos que moldaria o mundo moderno: o ataque a Pearl Harbor, evento que causou muito sofrimento e mortes, levando diretamente aos horríveis ataques nucleares de Hiroshima e Nagasaki.

Desenho que teria sido publicado na capa da revista Time

Jumbo e Dumbo trazem consigo um contexto literalmente pesado, denso. Trazem um registro histórico de épocas conturbadas, em que o ser humano se encontrava completamente afastado de sua própria essência e grandeza, causando inúmeros danos a si mesmos, aos outros e ao planeta e seus seres sencientes.

Mas nós sobrevivemos e evoluímos, assim como a história do elefante voador.

Dumbo (2019)

Tim Burton era o cara certo pra pegar essa história e fazê-la prosperar. No filme live-action de Dumbo lançado neste ano, temos o cenário sombrio e deprimente do início da década de 40, trazendo posteres desbotados, materiais desgastados, vítimas de guerra, bullying com o diferente, relacionamentos tóxicos e a tal ganância descontrolada. Mesmo assim, temos uma narrativa encantadora, mostrando o melhor do ser humano que aprende com os erros e é capaz de ser amoroso, solidário e empático. O ser humano que conectado com a sua essência consegue criar espaço para tudo e para todos, que consegue abundância sem subir em cima de nada ou ninguém. Aquele em que a criatividade flui e encontra soluções saudáveis para qualquer problema. Aquele que celebra sua paz de espírito.

Esse é o poder transmutador da história. Ela demonstra sua maestria na arte da alquimia. Ela não altera o passado, as dores que foram vivenciadas. Não, ela honra esses acontecimentos, deixa registrado, e então solta, e dá lugar a uma nova visão alinhada com uma nova consciência pessoal e social. Ela pega o sofrimento e transforma em alegria – as lágrimas de tristeza dão lugar às de felicidade.

Timóteo já dizia para Dumbo em 1941, “Aquilo que te prendeu aqui em baixo vai te levar para o alto!”. Bora pegar nossa bagagem histórica e usar como impulso para voar.

“Mas fiquei um mês sem poder falar, ao ver elefante voar”

Fontes:
https://brasil.elpais.com
https://entretenimento.uol.com.br
https://time.com
https://pt.wikipedia.org