Após ter tido sua estreia sucessivamente adiada, por conta da pandemia que se abateu sobre o planeta em 2020, Mulher-Maravilha 1984 finalmente teve seu lançamento mundial em Dezembro daquele ano, em um período ainda difícil, visto que, em vários países, os poucos cinemas que têm reaberto suas portas têm presenciado a (compreensível) relutância do público em voltar a frequentá-los. No mesmo dia em que foi lançada nas telonas, a produção também foi disponibilizada online no HBO Max, o serviço de streaming da Warner que, na época, sequer tinha previsão de chegada em nosso país. Todavia, os brasileiros tiveram a opção de adquirir o longa em serviços on demand. Feita a contextualização da forma embaraçosa com que chegou ao público, esta obra, que prometia ser uma das maiores sensações cinematográficas do ano, veio sem provocar a comoção esperada. Ao invés disso, despertou uma série de questionamentos em relação à sua narrativa, considerada por muitos um tanto quanto… inverossímil, até mesmo para um “filme de super-heróis”. Mas será que as controvérsias se justificam? Vejamos.

A sequência de abertura, que se passa em Themyscira, com Diana Prince ainda criança, é um deslumbre para os olhos, enriquecida pela inspirada trilha sonora de Hans Zimmer, que usou corais angelicais para ilustrar as belíssimas tomadas aéreas das festividades olímpicas realizadas pelas amazonas. Esta fabulosa introdução termina com um aprendizado duro, porém, necessário, para nossa pequena heroína, referente à importância de zelar sempre pela honestidade e pela… verdade. O Laço da Verdade, um dos maiores símbolos da personagem, é visto em ação pela primeira vez no filme logo no trecho seguinte, em que Diana, já adulta, em 1984, executa vários salvamentos pela cidade de Washington, e as cenas no shopping são de uma nostalgia contagiante, remetendo àquele espírito de heroísmo esperançoso que encantou plateias de toda uma geração lá atrás, nos longas clássicos do Superman protagonizados pelo inesquecível Christopher Reeve.

Após essas duas sequências empolgantes por cenários tão diferentes (e que indubitavelmente ganham em imponência se vistas na telona), é que as controvérsias do roteiro começam. Sem spoilers, digamos que, em relação à Steve Trevor (Chris Pine), o piloto por quem Diana se apaixonou, e que havia morrido no final do filme anterior durante a Primeira Guerra Mundial, a maneira como ele “volta à vida” é, no mínimo, constrangedora, resgatando um conceito até hoje polêmico visto em Ghost: do Outro Lado da Vida: o da “possessão corpórea”. Já a caracterização da vilã Bárbara Minerva, a Mulher Leopardo, vivida por Kristen Wiig, foi muito comparada à do Electro de Jamie Foxx em O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro. Se buscarmos um pouco mais na memória, é possível também traçar um comparativo com outro vilão, ainda mais caricato: o Charada de Jim Carrey em Batman Eternamente. O cartunesco desajuste social e os intempestivos atos posteriores em busca de auto promoção estão todos lá.

A caracterização de Maxwell Lord (Pedro Pascal) a lá “Donald Trump”, a princípio, se mostra apropriada com suas atitudes. O ator conseguiu dimensionar bem as grandes e catastróficas proporções das artimanhas do vilão. E o fato do megaempresário ser um pai negligente e se ver diante de uma possível redenção e reconciliação com seu filho é mesmo um conceito acalentador, embora a forma como esse arco foi mostrado traga em sua superficialidade aquele tom de fantasia nonsense que encontramos em O Mentiroso, com o já mencionado Jim Carrey. E o terceiro ato? Depois que a ameaça maior do longa finalmente se consuma e pessoas do planeta inteiro veem suas consequências, provenientes de suas próprias más gestões e egocentrismos, o caos que se instaura, embora tente se apresentar como pertencente à uma narrativa séria, não escapa de conter momentos involuntariamente cômicos, que remetem a… Todo Poderoso, protagonizado por… Jim Carrey (?!!!). Alguém da produção de WW84 deve ser muito fã do Jim (nós também somos)!

Mas e a Gal Gadot? Sim, ela continua irretocável, com sua beleza radiante, seu carisma e seus lindos movimentos acrobáticos nas cenas de ação. Ela não tem culpa nenhuma das atitudes incoerentes e absurdas cometidas por sua personagem, entre elas resgatar, de repente, do nada, um novo superpoder, cujo maior mérito é permitir ao expectador ver (ou não ver) um belo fan service, e só. Quando finalmente se dá o confronto da Mulher Leopardo (cuja transformação também não faz o menor sentido) com a Mulher-Maravilha, já trajada com sua armadura dourada, as cenas noturnas e, em sua maioria, à distância, são muito apressadas e não correspondem à toda expectativa que foi gerada em torno deste embate. Logo depois, finalmente chegamos ao também polêmico clímax da história, envolvendo Diana e Maxwell Lord.

A solução encontrada para a resolução da trama, com participação decisiva do Laço da Verdade e tudo o que ele representa, dividiu opiniões, e requer uma análise mais ampla. A partir do momento que uma pessoa se vê diante da possibilidade de, magicamente, realizar um sonho, ela irremediavelmente vai pensar, primeiro, nela própria, e talvez só depois se dar conta de que aquela oportunidade de realização, se tivesse sido bem aplicada em um desejo, ao invés de egoísta, altruísta, poderia beneficiar, quem sabe, a humanidade inteira. O Laço da Verdade, no filme, possui um poder muito maior do que simplesmente fazer com que as pessoas digam a verdade. Neste clímax, Diana que, enquanto o manuseia, não pode mentir, consegue, também por meio das inspiradas palavras que profere em seu conciliador discurso final, fazer com que as pessoas enxerguem a verdade e se deem conta do caos resultante de tantos “desejos realizados”, convencendo-as a, naturalmente, abrirem mão desses sonhos absurdos, em prol do restabelecimento da normalidade, assim como ela própria fez, o que pode ter lhe custado o amor de sua vida.  

A diretora e co-roteirista Patty Jenkins pode ter tomado algumas decisões duvidosas ao longo de toda a execução desta obra, mas seu desfecho, quando analisado mais detalhadamente, se mostra poético, ao nos brindar com uma linda alegoria da paz conquistada por meio de palavras, nas quais nos damos conta da importância da realização de sonhos possíveis, aqueles que, além de beneficiar os que os sonharam, também podem espalhar os benefícios dessas realizações a todos aqueles que estiverem em volta.  

Embora não tenhamos aqui o peso dramático do primeiro filme, e não haja mais a ingenuidade da protagonista que combinava perfeitamente com aquela proposta, esta segunda aventura solo da heroína, mesmo exigindo demais da nossa suspensão de descrença, com seu roteiro repleto de situações irregulares, se mostra, afinal, um longa divertido, tecnicamente bem executado e com doses de ação que demoram um pouco a chegar, mas, quando chegam, empolgam em (quase) todas as cenas. Mas o real legado de Mulher-Maravilha 1984 é que ele nos leva a refletir sobre individualidade e coletividade, egoísmo e altruísmo, ganância e solidariedade, renúncia de alguns sonhos, em benefício de outros sonhos maiores, enfim, sobre a beleza da vida como ela é e como ela pode ser, bela em sua simplicidade. E na vida real não temos, e nem precisamos de um Laço da Verdade para percebermos isso. Ah, e que cena pós-créditos nostálgica e maravilhosa!!!

Saldo final: três cookies!