Primeira Parte – Sem Spoilers

Oxigênio, esta angustiante produção original Netflix, advinda da França, está “prendendo” a atenção de quem se dispõe a assisti-la, constituindo um belíssimo exemplar de uma ficção científica aparentemente simples, mas que, com o passar dos minutos, te surpreende mais e mais a cada nova revelação, e elas veem em altas doses da metade para o final.

Uma mulher acorda, e percebe que está em uma câmara criogênica, não se lembra de como foi parar lá e, pior, sequer se recorda de quem ela é. Pronto, está estabelecida a premissa básica do filme, com a qual a protagonista terá que lidar e, à medida que ela faz suas descobertas, vamos descobrindo junto com ela, pois a maneira intimista como o longa foi filmado nos coloca dentro da cápsula onde ela se encontra durante (quase) todo o tempo, sem que saibamos, a princípio, absolutamente nada do que há lá fora.   

Como se esse claustrofóbico confinamento não fosse tenso o suficiente, rapidamente ela também é informada que, devido à uma “falha no sistema”, o nível de oxigênio do qual ela dispõe é de apenas 34%, e diminuindo a cada nova respiração. Sagaz e astuta, ela imediatamente começa a investigar sua situação, buscando meios para dela sair. Para isso, ela contará com a presença virtual da inteligência artificial M.I.L.O. (Operador de Ligação de Interface Médica (voz de Mathieu Amalric)) com a qual começa a interagir logo nos primeiros segundos após ser acordada. Embora desprovido de emoções e, portanto, indiferente à clausura na qual a protagonista se encontra e da qual deseja desesperadamente sair, M.I.L.O. será o elo de ligação da mulher com o mundo exterior.

Ao contrário do que pode parecer a princípio, esta produção, que se dedica quase integralmente a mostrar apenas sua protagonista dentro de um casulo, consegue a admirável proeza de não ser monótona no decorrer de toda a sua duração. A câmera, estrategicamente posicionada em ângulos criativos, e amplificando a angústia da protagonista quando investe em closes fechadíssimos de seu rosto, somada à trama ágil e dinâmica que, depois da primeira reviravolta, traz mais uma e mais uma, nos levando cada vez mais longe em seu alcance dramático, torna Oxigênio uma daquelas experiências que realmente nos prendem a atenção, para saber até onde vai chegar. Destaque para uma longa sequência de diálogos da protagonista com mais alguém, em que a câmera gira em 360º diversas vezes, focalizando suas expressões e reações diante de cada novo fato que lhe é revelado.

Esta envolvente história criada pela roteirista Christie LeBlanc foi conduzida com extrema agilidade pelo diretor Alexandre Aja, experiente com obras de terror, e a bela Mélanie Laurent, mais conhecida por sua “incendiária” atuação em Bastardos Inglórios de Quentin Tarantino, como a marcante Shosanna, aqui tem uma performance assustadoramente convincente, nos transmitindo exatamente o drama sentido pela personagem, nos fazendo comemorar cada pequena vitória que ela obtém em sua busca por respostas e pela liberdade, além de nos instigar a todo instante a descobrir, junto com ela, e antes que o oxigênio acabe, as reveladoras verdades. Quem é esta mulher? Porque está ali? E afinal de contas, em que lugar do planeta ela está?

Segunda Parte – Com Spoilers

Antes de continuar a leitura, aceita um sedativo?

Usando de sua perspicácia, a mulher pede para M.I.L.O. fazer uma análise de seu DNA, achar um correspondente e lhe mostrar no monitor. É assim que ela descobre que se chama Elizabeth Hansen, ou apenas Liz para os íntimos, uma geneticista sueca, com doutorado em criogenia, ganhadora do Prêmio Nobel e extremamente respeitada pela comunidade científica mundial. Desde o início, e durante todo o tempo, Liz tem rápidos flashbacks que, somados às imagens que acessa na internet, a ajudam, pouco a pouco, a se recordar dos últimos eventos que a teriam colocado naquela cápsula. É então que ela se lembra de seu esposo, Leo Ferguson (Malik Zidi).

Chega uma hora em que ela consegue dialogar, por meio de uma ligação telefônica, com alguém que parece saber exatamente o que está acontecendo, mas se mostra inicialmente relutante em dizer-lhe toda a verdade. E quando esta verdade finalmente é dita a ela, a inacreditável revelação explode a sua mente, e a nossa. Quem está do outro lado da linha é a verdadeira Liz, décadas mais velha do que a Liz que temos acompanhado desde o início do filme que, na verdade, é um clone, com memórias implantadas! Ela foi gerada naquela cápsula de sobrevivência, estava em sono criogênico desde que “nasceu”, há cerca de 12 anos. Seu tempo real de vida, portanto, resume-se apenas aos poucos minutos que se passaram desde que acordou, devido a um superaquecimento do sistema, que também danificou algumas outras cápsulas da estrutura maior onde se encontra, nas quais seus ocupantes não resistiram. Mas quase 10.000 clones continuam hibernando. Ela e os demais tripulantes estão numa nave mãe há cerca de 65.000 quilômetros de distância da Terra. E seguem numa viagem que durará ao todo 34 anos. Ou seja, ainda têm mais 22 anos de hibernação pela frente, até chegarem ao seu destino, um planeta há 14 anos-luz de distância. A missão: povoá-lo e, assim, perpetuar a continuidade da vida humana. Pois a humanidade foi acometida por um vírus mortal. Leo, o esposo da verdadeira Liz, jaz faz tempo, vítima desse vírus. E em questão de poucos anos, a insustentável situação causará a extinção da vida humana na Terra.

Pausa para respirar, enquanto ainda há oxigênio.

É interessante notar que as descobertas da Liz citadas acima vão se revelando uma de cada vez, proporcionando ao expectador um muito bem planejado festival de plot twists que nos levam cada vez mais longe na dimensão da grandiosidade da narrativa. E a analogia com a pandemia que se abateu sobre o nosso planeta desde 2020 é óbvia. O confinamento no qual Liz se encontra, e cujo pânico lhe faz surtar em alguns momentos, irremediavelmente traz à tona a prolongada quarentena e o consequente desejo de dela sair. Aquela frase popular: “Pare o mundo que eu quero descer!”, ganha um sentido muito mais amplo e profundo diante de uma realidade global e o anseio de se buscar soluções para vencê-la, e é o que acontece, literalmente, no longa. Difícil não se impressionar, mesmo na ficção (que é sempre um reflexo da vida real) com o extremamente pertinente paralelo que esta obra traça com o panorama atual, com imagens de pessoas usando máscaras e cientistas em uma louvável corrida contra o tempo na busca por soluções. Mesmo que não tenha sido intencional (pois o roteiro deve ter sido concluído antes do início de 2020), é notória a comparação com a realidade contemporânea da qual todos nós estamos querendo sair. Algo semelhante aconteceu com outro título recém-lançado pela Netflix: a comédia satírica Não Olhe Para Cima, cuja trama, embora tenha sido pensada como uma crítica ao aquecimento global, também pode ser vista como alegoria da pandemia. Voltando à Oxigênio, em meio a tantas notícias bombásticas as quais Liz tem acesso, e diante da contagem regressiva que continua em direção ao fim de seu oxigênio, ao menos um alento Liz recebe, o de saber que um clone de Ferguson também faz parte da tripulação que, juntamente com ela, está a caminho da nova Terra. Mas, para conhecê-lo pessoalmente, ela terá primeiro que resolver seu pequeno problema de falta de ar.

O inteligentíssimo roteiro de Oxigênio também traz um detalhe ao mesmo tempo pequenino e gigantesco que merece atenção: caso a nave mãe consiga chegar a seu destino, ela deverá liberar em sua atmosfera as cápsulas com todos os clones, que pousarão rodopiando suavemente na superfície graças ao sistema de hélices individuais desenvolvido por Ferguson, que se inspirou na infinita sabedoria da Mãe Natureza, e as sementes voadoras de Árvores de Bordo que usam esse mesmo princípio (da mesma espécie daquelas que sobrevoaram os ares da oscarizada animação da Disney/Pixar Soul). O filme vai “plantando” essa informação elegantemente, inserindo vários flashbacks de Liz e Leo estudando o assunto. Podemos dizer que essas brilhantes cápsulas de hibernação são, literalmente, sementes das estrelas!

Nos levando muito além do que poderíamos imaginar a princípio, Oxigênio, quando chega em seu desfecho, nos convida a reflexões pessoais, comunitárias e universais. Nos faz pensar acerca do instinto natural que temos de prezar por nossas vidas e lutar por elas até o último respiro que a porcentagem de oxigênio no ambiente permitir. Nos leva a lembrar de momentos que ainda não foram vividos, lembranças de fatos ocorridos com outras vidas, emoções que ainda não foram sentidas, mas que queremos sentir. E nos oferece um vislumbre de um novo tempo em uma nova Terra, onde podemos começar do zero, e viver uma vida plena, repleta de realizações. A princípio, sem que tenhamos necessariamente que sair de nosso planeta para isso… Assim como a realidade se reflete na ficção, que ao menos algumas dessas extraordinárias histórias fictícias que acompanhamos, um dia, de alguma forma, possam se refletir na realidade.

Esta obra merece quatro cookies bem oxigenados!