O Universo tem uma maneira engraçada de lidar com as coisas. Bem, não engraçada, mas um jeitinho pessoal que a gente ainda não sabe compreender muito bem. Nós fomos criados sob uma lógica materialista, baseada em partículas, de três dimensões. E nosso amigo Universo permeia nas ondas, nas frequências, na dupla fenda, nas multidimensionalidades. Então muitas vezes a gente conversa em línguas diferentes, mas nada que uma mímica e boa vontade não resolvam aos pouquinhos.

Há 26 anos, Bill Murray estreou nos cinemas com o filme que iria popularizar as tramas de loops temporais. Feitiço no Tempo trouxe para a cultura pop mainstream o conceito de termos o protagonista da trama preso num dia ou período de tempo que se repete várias vezes. Desde então, tivemos vários outros filmes e livros que exploram o tema. A televisão também gostou muito da temática, e sempre temos episódios em que as personagens se encontram num loop, como em Arquivo x, Stargate SG-1, Charmed, Fringe e Star Trek: Discovery. No entanto, nunca tivemos uma série inteira baseada nesse conceito. Até agora.

Russian Doll estreou na Netflix dia 1 de Fevereiro, e traz a história de Nadia Vulvokov (Natasha Lyonne), uma mulher que morre no seu aniversário de 36 anos, mas que continua retornando para sua festa continuamente depois de morrer outras vezes. Enquanto ela questiona sua sanidade mental, Nadia começa a procurar pistas para entender o que diabos está acontecendo. Criada por Lyonne, Amy Poehler e Leslye Headland, a série possui 8 episódios, a qual desenvolve a questão do time loop de uma maneira que ainda não tínhamos visto na TV.

No geral, em todos esses livros, filmes e séries, aqueles envolvidos no loop precisam aprender algumas coisas e mudar alguns comportamentos para conseguirem voltar à linearidade normal. Há sempre esse componente de melhoramento pessoal. É como um jogo em que você vai aprendendo, melhorando e passando de nível.

Aliás, é bem assim que a realidade é vista em Russian Doll. Nadia é engenheira de software que desenvolve jogos, e seu cérebro treinado para entender todos os componentes que constroem aquela realidade, como a quarta dimensionalidade, a ajudam a resolver os mistérios da situação. No entanto, assim como em nossas próprias vidas, o que é realmente importante no final não é entender necessariamente como o mundo funciona, mas como nos comportamos perante a ele.

A realidade de cada um é resultado de seus pensamentos interiores. Conceitos, traumas e crenças – a maioria adquirida durante o período da infância – modelam nosso cotidiano. Mesmo que todos vivam no mesmo mundo, suas óticas serão diferentes, já que nosso interior molda nossas perspectivas. “Não são os prédios que são assombrados. São as pessoas”. Como então podemos chegar o mais próximo possível do que é a realidade em si?    

Muitas linhas de autoconhecimento e de espiritualidade concordam que o jeito é render-se. É o pulo no abismo ao entender que não podemos controlar tudo e que nossa visão é viciada. Quando nos entregamos ao fluxo do que é, podemos calar aos poucos os barulhos dos programas que rodam em nossa cabeça o tempo todo e enxergar além deles. Quando temos uma mesma situação que força comportamentos diferentes para sair do loop, não há outra alternativa senão ir enfrentando suas sombras e retornado à sua essência.

Quando nós melhoramos, inevitavelmente melhoramos também todos aqueles ao nosso redor. Não pelo discurso, mas por nossas ações. Acho que essa é a parte mais legal de termos o conceito do time loop expandido; é captar um pouco mais da consequência desse bug no sistema.

A boneca russa do título da série se refere às matrioskas, artesanato que cria cópias exatas ou semelhantes de figuras femininas uma dentro da outra em tamanhos decrescentes. Elas contam histórias familiares, de uma mãe que carrega a filha no útero e assim em diante. Também são um símbolo de nossas camadas pessoais interiores. Em sentido figurado, tratam do “símbolo da personalidade e projeção da alma no espaço”. De qualquer forma, essas bonecas retratam uma história de amor – seja próprio, por seus familiares ou por todos que fazem parte da nossa vida. E é essa característica que permeia a narrativa do início ao final.

Com episódios de aproximadamente 30 minutos, é fácil cair numa maratona e consumir Russian Doll em apenas um período. A série nos leva por momentos cômicos e por momentos tensos e sombrios, questionando nossa lógica, sanidade e moralidade. Depois de muitas mortes e experiências, a linguagem do Universo começa a ficar mais simples. No final, podemos não ter certeza exatamente do que ele queria dizer, mas sentimos no coração seu significado.

“Life is like a box of timelines”

Obrigada, Netflix, por mais uma série incrível ❤️