Lançado pelo canal japonês NHK, Tokusatsu Ga Ga Ga é um dorama (série japonesa) de apenas 7 episódios, baseado no mangá de 2014 criado por Niwa Tanba. O nome em tradução livre significa “doida por tokusatsu”, ou “muito muito fã de tokusatsu”. A história estreou em 2014 na revista Big Comic Spirit. No Japão, é comum as sagas serem lanças primeiro em grandes revistas, pois dependendo da aceitação do público, ganham posteriormente suas versões próprias em mangá, os quadrinhos orientais. E foi o caso de Tokusatsu Ga Ga Ga, que inclusive recebeu em 2017 o prêmio cultural oriental Osamu Tezuka – premiação anual para o melhor mangá publicado – que o levou a ganhar em 2019 a adaptação em série para o canal NHK.

Na história acompanhamos a protagonista Kano Nakamura, uma adulta que trabalha em um escritório e é fascinada por tokusatsu (seriados com efeitos especiais e heróis japoneses), ou seja, uma Tokufã. Logo nos primeiros minutos a vemos assistindo a um episódio do sentai (heróis coloridos em equipes como Timeranger, Changeman e a adaptação americana Power Rangers), fictício da série: Juushowan, e se encantando com a mensagem de impacto daquele episódio. Seu quarto é decorado por itens geeks diversos como DVDs, camisetas, acessórios e bonequinhos (tipo o escritório dos membros do Serial Cookies!) e ela está claramente feliz curtindo tudo isso. Porém, esconde dos outros o sentimento de gostar desse universo, e devido a isso às vezes sente-se muito sozinha. Funcionária exemplar no trabalho, dedicada, simpática e muito querida por todos, ela sente constantemente a vontade de falar das suas paixões e de onde tira inspirações para seu próprio ser, como quando em uma reunião que elogiam a postura de Nakamura, a qual em resposta diz palavras muito bonitas que na verdade tirou das séries de tokusatsu.

“Eu não tento ser realmente uma adulta adequada, mas lembrar das coisas que aprendi (no tokusatsu) quando criança. Todas as coisas mais importantes para saber, sobre ser um adulto é ensinado (pelo tokusatsu) quando somos crianças. (O Tokusatsu diz:) Não engane os outros, não minta, nunca desista.”.

Temporada 01, Episódio 01 (S1E1).

A história é leve, adorável e de fácil identificação de geeks pelo mundo, não apenas os Tokufãs, mas os fãs de quadrinhos, animes, filmes, séries e qualquer outro exemplo. É também engraçada, pois os momentos em que a protagonista se esconde ou disfarça algo junto a atuação da atriz é muito divertido! Além do roteiro mostrar o carinho pelas produções japonesas, uma das mensagem que a série passa é que não importa do que você é fã, mas se você gosta de algo que te traz algo bom e alegria, não importa o que é e para que público é destinado, apenas que te faz bem. Todo mundo pode curtir tudo e às vezes o mais simples entretenimento faz uma diferença imensa na vida de alguém. Às vezes aquele pequeno momento assistindo algo pode ser o único minuto do dia em que a pessoa se sinta fazendo parte de algo, confortável, confiante e recebendo incentivos positivos para ser forte e seguir em frente.

“Se você gosta de algo, idade ou gênero não deveria importar.”.

Temporada 01, Episódio 02 (S1E2).

Ao decorrer da trama a protagonista lida com situações comuns do dia a dia de qualquer adulto, mas o legal são as relações que ela faz com o que assiste. Como por exemplo: relembrar as palavras bonitas no dia da reunião; ou criar o “monstro do escritório” como uma metáfora às dificuldades da vida social trabalhista; ou um desafio do dia que a faça analisar seus sentimentos do que gostaria e do que deveria fazer.

Os pensamentos de Nakamura decorrentes dessas situações são mostradas na forma de personagens reais de tokusatsu, com heróis a incentivando a realizar algo bom, ou vilões como os desafios a serem derrotados, resultando assim em filmagens divertidas e muito bem produzidas como se ela estivesse dentro de um tokusatsu, ou que estes tivessem saído da ficção para a realidade, quando tudo em verdade acontece apenas na cabeça da protagonista. Essas são algumas das melhores cenas da série tanto em quesitos de roteiro, quanto visual.

No Japão nem todos enxergam com bons olhos adultos terem hobbies que também são destinados às crianças. Assim como colecionadores de itens do gênero. Mas a repressão também ocorre às vezes com as próprias crianças. É muito duro quando uma criança é simplesmente impedida de ver algo porque seus pais acham fútil ou inútil e que o tempo livre deve ser gasto para, por exemplo, estudar mais com foco em ser sempre o melhor. Não que estudar seja algo ruim e que ser bom em algo seja um problema, mas no Japão é muito triste a alto índice de suicídio de jovens talentosos e inteligentes, mas completamente infelizes, ou quando nos deparamos com situações em que alguém precisa esconder algo que lhe faz bem e que não teria nada demais em gostar daquilo. Como diz Berti Heling, criado do sistema de terapia holística “Constelação Familiar”, por trás de um adulto infeliz pode haver uma criança ferida. O que nos leva a duas situações na série, o pequeno Damian, uma criança japonesa que é obrigada pelos pais a usar seu tempo livre pós escola em um cursinho para aprender mais, e a repressão da mãe de Nakamura quando criança, que era proibida de gostar de tokusatsu. Damian esconde dos pais e conta apenas com o apoio escondido da vó para ter seus períodos de diversão com os heróis, e Nakamura era reprendida pela mãe considerar tokusatsu algo exclusivo de meninos, tendo assim medo de ser julgada como adulta por ser algo destinado em especial para as crianças. Momentos de lazer e diversão são extremamente necessários para o equilíbrio das emoções e sanidade mental de qualquer ser humano, independentemente da idade!

“Sim. Histórias-alvo para crianças são carregadas de mensagens que encorajam você a se tornar um adulto bom. Quando você se torna um adulto desonesto… está traindo o caminho que deveria seguir.”.

Temporada 01, Episódio 01 (S1E1).

Nakamura pôde curtir o que gostava sem preocupações em casa apenas quando adulta, assim como colecionar itens que eram confiscados pela mãe. Porém, diverte-se sozinha, e quando indo ao trabalho vê um chaveiro de um dos personagens da série atual na bolsa de uma mulher no metrô ela se dá conta do quanto sente falta de ter alguém com quem compartilhar, mas não quer falar abertamente, e sim que seja identificada por um igual de forma discreta.

Assim, Nakamura vai em busca de algo simbólico para mostrar no seu dia a dia para que outro “Tokufã” a reconheça, e isso foi o ponto inicial para que algumas coisas começassem a mudar. Abrindo sutilmente seu carinho pelas séries e personagens, ela começa a fazer amigos que nutrem os mesmos sentimentos. Ela permite que algumas pessoas entrem em sua vida e saibam de seus sentimentos. Experiências divertidas e conversas além das séries começam a surgir. Troca de ideias e alegrias passam a ser constante. Quem tem amigos tem tudo! Isso faz com que ela se torne uma pessoa muito mais feliz, podendo viver momentos que lhe foram privados em sua infância. Inclusive, o pequeno Damian é um dos seus novos amigos. No intervalo do trabalho dela e intervalo do cursinho dele, ambos falam de situações que os afligem, como pensamentos, sonhos, e claro, tokusatsu! Interessante que na série os amigos que ela faz são diversificados de idade, gênero e ocupação. Mostrando que o que conecta as pessoas vem da vibração de suas almas e corações, sem rótulos ou regras.

“Quando você está alinhado com o seu espírito, a mágica acontece. As recompensas que você tanto procura em sua jornada física são manifestadas quando você se abre e permite que surjam possibilidades, como quando você era criança e acreditava no mundo mágico. Entre nesse fluxo de sua consciência e traga essa energia de volta para tudo o que faz e assista com prazer enquanto seu mundo muda para um lugar onde os milagres são novamente possíveis.”.

Via Sharon Taphorn“SABEDORIA DOS ANJOS – “LEMBRE-SE”

Visualmente a série é muito bonita. O investimento em efeitos especiais com certeza foi alto, pois os heróis, Juushwan (Sentai) e EmmerJason (Metal Hero tipo Jaspion, Gavan) são tão bem produzidos e convincentes que parecem que realmente possuem séries que existiram, e não ficção da ficção. Uma pena, pois eu adoraria também ter um chaveirinho do Shishileo. Alguém está indo para o Japão para conferir se existe a mercadoria? Haha!

Nunca fui reprendida por gostar demaaais de coisas do entretenimento e colecionar itens variados. Até por ter escolhido o Design como profissão é tranquilo para os meus familiares perceberem que por trás de todo “glamour” de um bonequinho ou um pôster bonito tem muito projeto, estudo, pesquisa e adultos talentosos criando. Mas não teve como não se identificar com a protagonista, quando por exemplo, na adolescência algumas pessoas deixam de gostar “destas coisas”, e vivem dentro da sua própria bolha curtindo seus filmes, bandas, animes, livros, séries, etc.

Quando, por exemplo, descobri Power Rangers in Space na saudosa Fox Kids, pirava nas propagandas dos bonequinhos que tinham led no capacete e acendiam. Tinha vergonha de falar que gostava, que queria, e de ir lá na loja olhar pelo menos o valor. Hoje não ligo para isso e coleciono diversas franquias. Mas como disse, a profissão escolhida ajudou. Claro que não foi da noite para o dia que a “coragem” apareceu. Assim como a Nakamura, também tive e ainda tenho batalhas internas sobre o que mostrar ou não, o que expor na prateleira ou esconder na gaveta. E quando seus amigos ou parentes menos tolerantes visitam sua casa? Nem sempre estamos preparados psicologicamente para lidar com mentes fechadas que não enxergam o além dessas narrativas, como nós vemos.

Nakamura foi reprendida pela mãe, o que causou alguns traumas na vida dela, como ver revistas sendo queimadas, colecionáveis sendo jogado fora e televisões desligadas seguidas de uma bronca. O simples prazer de ler as notícias do próximo episódio só foi possível quando ela se tornou adulta, morando sozinha e administrando o próprio dinheiro. Por muito tempo ela evitou receber a mãe em casa e finge gostar do que a mãe escolhe e compra para ela usar. Em determinado ponto da série a mãe descobre que Nakamura continua gostando de tokusatsu e não só a humilha quebrando o action figure favorito dela publicamente como brigam feio a respeito do gosto e da postura de ambas ao longo dos anos. Elas se exaltam e praticamente cortam relações como mãe e filha.

Em outro momento da série, ambas passam a refletir o porquê de cada uma curtir o que curte. A filha tokusatsu e a mãe itens kawaii (fofinhas, cheias de frufrus e pompons), e aí que cada uma compreende o lado da outra. A mãe nunca pôde gostar do estilo “menininha fofa” e usar essas coisas pois teve que crescer rápido para criar dois filhos sozinha fazendo os papéis de pai e mãe. Ser mãe solteira já é algo que não é fácil em um país em que grande parte ainda é bem tradicional, e não vê isso como algo tranquilo de lidar. É mais difícil ainda.

A filha curtia as cenas de ação e robôs gigantes e se sentia tocada pelas mensagens de força e superação do tokusatsu, mas não lhe trouxe nada ruim como as suspeitas da mãe. Nakamura se tornou uma adulta responsável e parte disso veio do seu entretenimento favorito. Mas pela péssima relação com a mãe, desde sempre, teve que viver esse mundo sozinha e esconder suas coleções, assim como estilo de vida fingindo pra mãe ser algo que não era. Todos travamos nossas batalhas internas as quais as vezes o outro nem imagina a dificuldades que o outro carrega por trás de um sorriso, de uma filha exemplar, de uma mãe dedicada ou de e uma funcionária exemplar.

Não é gostar de algo que significa que a pessoa tem algo errado. Outros sentimentos que nem imaginamos podem estar em jogo também, mas escondidos. Por trás de um sorriso podemos estar magoados com algo que o outro nem imagina ou que pode até mesmo ser o mesmo motivo visto de outra perspectivas. Taí as batalhas internas que mencionei. Lógico que se tivesse tido diálogo entre mãe e filha desde o começo, as coisas teriam sido diferentes, mas aí não teria série para refletirmos a respeito, não é mesmo? =)

Uma das coisas que mais me tocou na série foi o momento em que vemos três linhas temporais da vida da protagonista ao mesmo tempo – criança, adolescente e adulta – recebendo a mesma mensagem e absorvendo-a de formas diferentes conforme a necessidade da época. Esta que fala a respeito de sentimentos amorosos sobre o que ela gosta, sobre o que realmente toca o coração dela. O mesmo gatilho surgindo em momentos pontuais de sua vida em que ela precisa se relembrar da mesma lição. Algo que poderia acontecer na vida de qualquer um de nós independente de gosto, gênero, idade ou nacionalidade. É algo que toca qualquer ser humano. Com este tipo de mensagem que ela percebe que além de poder ser feliz com suas coleções, e agora também amigos, como perdoar a mãe. Assim como a mãe que após a briga procura ver o que realmente é o tokusatsu para entender a filha e perdoá-la também.

“Todos os sentimentos amorosos…nunca irão desaparecer. As memórias das pessoas são instáveis e muito misteriosas. Mas se alguma coisa as ativar, elas retornarão todas as vezes! É por isso que…nós certamente nos reencontraremos. ”.

Temporada 01, Episódio 07 (S1E7).

Gostaria de encerrar este texto incentivando a todos que tiverem algo que gosta – uma lembrança saudosa de algum filme, desenho, quadrinhos ou série -, e tiver perdido o hábito de lazer delas, a tirar um momento para abrir o coração para curtir de verdade a forma como aquela história ressoa com você! Não interessa de vocês estiver “velho demais pra isso”. Idade é só um número. Corpo é apenas a forma humana de experienciarmos a vida na terra, o que importa é o que está no seu coração e o que ressoa com a sua alma! E claro, recomendo também a assistir a série! =)

“Quando você ama algo, este sentimento nunca desaparece de verdade, né?”.

Temporada 01, Episódio 07 (S1E7).