Baseado na obra da autora americana Delia Owens, que é um grande sucesso e faz parte do clube do livro da atriz e produtora Reese Witherspoon; que além de promover esta ação literária, tem produzido, dirigido diversas produções áudio visual de alta qualidade narrativa. E desta vez não é diferente; ao lado de um belo time de mulheres, Reese está a frente da adaptação cinematográfica do livro “Um Lugar bem longe daqui” (Where the Crawdads Sing) que estreia no Brasil em 1º de Setembro/22.
A obra conta a história de Kya Clark, uma menina que cresceu diante de grande dificuldade, e abandonada pela mãe, irmãos, pai e pela sociedade em uma casa no pântano da Carolina do Norte. A menina que teve que ser forte para sobreviver, primeiro as dificuldades de situação de escassez e de relacionamentos familiares tóxicos, com histórico de distúrbio de personalidade e agressividade, depois diante dos desafios básicos da própria vida e de sobrevivência e por fim as suas próprias questões pessoais e emocionais. Ela começa, mesmo muito menina, se virando no básico da sobrevivência, colhendo e vendendo mexilhões na beira do pântano. Estes pequenos animais que habitam conchas, que futuramente ela veio a fazer desenhos e ilustrações de conchas, penas e outros elementos da natureza. Colecionando e catalogando-os, e que na sequência vêm a fazer uma grande virada em sua vida. Ela também tem uma forte conexão com penas, e o arquétipo da pena tem a bela simbologia de trazer leveza, sorte, suavidade, direção de caminhos e dar asas. E foi através da troca de penas que ela e o personagem Tate retomaram uma conexão que foi iniciada na infância.
“As pessoas esquecem das criaturas que vivem em conchas”
Esta passagem nos faz lembrar da metáfora da concha, das ostras em relação ao “ostracismo”. Ostracismo é um termo de origem na antiga Grécia que significa afastamento de um indivíduo. Seja imposto ou voluntário, do meio social ou de participar de atividades habituais. Que faz correlação com o que ocorreu com Kaya e sua história de vida.
A protagonista cresceu solitária contado com a nutrição da natureza que a cercava, muitas perguntas, dores e a gentileza de Tate, filho do pescador local que a ensinou a ler, que vieram a ser o alimento de sua alma. E este é um dos pontos interessantes da história, em que vemos uma menina que tem tudo para viver 100% dos traumas da criança ferida e abandonada, e em vez de atacar, em seu “ostracismo”, ela mantém sua sanidade através do contato com a natureza à sua volta, reconhecendo suas riquezas e seu fluxo natural, dos livros e da arte. Kya absorveu muito conhecimento de livros de biologia que e transformaram o seu olhar e visão de mundo, mesmo sem poder ter frequentado a escola; e herdou os dons da mãe para ilustração.
E uma curiosidade interessante é que a autora Délia Owens é também cientista e passou toda a sua experiência ao trazer com riqueza de detalhes, as paisagens e os animais da história. Estes que na narrativa assumem o papel de protagonistas secundários, enaltecendo com suas belezas a força e subconsciente de Kya, através de arquétipos e animais de poder como o gavião e a revoada dos cisnes. E trazendo as entrelinhas da biologia, o Pântano é usualmente considerado um lugar feio sujo, em que a maioria dos moradores da cidade não se importam, e querem por abaixo e transformar em literalmente puro concreto. Porém este bioma é um ecossistema extremamente vivo e importante ecologicamente.
“Ao longe, mais além, onde cantam os lagotins… O brejo sabe de uma coisa acima de todas: Toda criatura faz o que é preciso para sobreviver”
Conhecida como “a menina do pântano” pela sociedade e moradores da região que a rejeitaram; acompanhando a jornada da personagem em duas linhas temporais, a de sua infância e juventude quando é acusada de um crime.
“Segredos estão enterrados logo abaixo da superfície”
“Quando encurralado, desesperado ou isolado, o homem retorna aos instintos cujo objetivo imediato é a sobrevivência. Não se trata de moralidade, mas de matemática simples. Entre si, os pombos lutam com a mesma frequência dos gaviões.”
Em um Lugar Bem longe Daqui – Pg. 13
Além de todas estas questões, ainda há o desafio histórico. Por se passar pela década de 60, temos o período de segregação racial, muito preconceito nos EUA e a separação de espaços de vivência periféricas brancos x negros. E é especificamente um casal de negros, os poucos que estendem a mão para Kya e se tornam um ponto de ajuda e apoio para ela.
O filme ganhou uma canção origina folk: “Carolina”, escrita por Taylor Swift e produzida com Aaron Dessner, que também coparticipou dos últimos álbuns de Folk-Pop Folklore & Evermore. Incluive Taylor é fã do livro e pediu para escrever uma música para o filme. Normalmente a trilha sonora de um filme é escrita e acrescentada na pós-produção, mas neste caso, a diretora Olivia Newman viu tanta conexão da sua visão e da obra com os acordes que a canção moldou o tom de “suspense suave” do filme com a vibe da música.
A obra em essência é mais do que o mistério, o suspense, um romance ou uma ficção. A narrativa é muito mais sobre as problemáticas do instinto das relações humanas. Temos a luta de uma menina que mesmo sendo tão rejeitada e hostilizada, e sendo julgado o tempo todo, ela não odeia aquelas pessoas, ela quer o seu simples direito de viver e estar no fluxo natural de seu habitat. É muito visto destas dissonâncias humanas, que para o considerado normal e privilegiado, é muito mais fácil julgar e rotular o diferente, agindo como um predador, ao invés de aceitar os fatos e respeitar o espaço e o outro.
“Ser isolada é uma coisa, ser caçada é bem diferente!”
Em suas reflexões, a personagem que tão rejeitada, carregando estes fortes traumas de abandono, pesquisa e busca entender de em em alguma espécie na natureza existe e por quê uma mãe chega a abandona um filho. Como parte de determinados ciclos da natureza, ela passa por aprendizagem através de situações de repetições de padrões, que é quando ela compreende porque a mãe fez o que fez, assim como todos os outros. Ver para entender e dissolver situações. Perceber o que impede de dar um novo passo e olhar a jornada com uma nova perspectiva. Como a própria Kya conclui, muitas vezes as pessoas não estão agindo como tal contra outra pessoa, elas estão simplesmente julgando elas mesmas.
Ela conduziu sua vida de forma simples dentro das opções em que podia se apegar para sobreviver. Somado a luta do preconceito e rótulos dados a ela, especialmente por conta da situação de vida inferior sem ter tido grandes oportunidades. Ela fez o que melhor que podia com a consciência tinha moldado a partir da da sua história. E o preconceito é realmente um dos pontos fortes tratados na história, apresentado de diversas formas, incluindo em metáforas aos predadores e a natureza em si em que todas as vidas valiosas e fazem parte de um ecossistema em que cada um têm o seu papel.
“Apesar de tudo tentar destruí-la… a vida persiste”
O desenrolar da narrativa e o dom de Kaya, para desenho associado aos seus estudos de biologia, trazem para sua vida situações inimagináveis. Sua jornada de crescimento é muito tocante e é impossível não se cativar pela personagem vendo o mundo através dos olhos dela. E o final… nossa! Ele é surpreendente e me fez sentir algo que não tinha a via a bastante tempo em novas produções: doses certeiras na narrativa de emoção, romance, mistério, tensão, crescimento, reflexão e surpresa! Sensível, belo, equilibrado sem deixar de ser intenso, 5 cookies!