Eu amo viver num mundo globalizado e cheio de tecnologia. Claro que dá pra fazer uma lista gigante com todos os “contras” desse universo, mas no lado dos “prós”, tem isso: filmes podem ser realizados por financiamento coletivo e um veículo como a Netflix pode sair por aí fazendo séries de alto nível e as distribuindo de maneira acessível. A empresa vem revolucionando a indústria do fazer e ver televisão há algum tempo, e com Orange is the New Black, a Netflix ganha “o prêmio” figurativo (e todos os literais também, por favor). Eles simplesmente conseguiram reunir uma fantástica equipe de produção, um brilhante elenco e Jenji Kohan.
Eu sou fã da Jenji desde a primeira temporada de Weeds; e o que ficou muito claro na série foi a habilidade de Kohan em tratar de um assunto sério de uma maneira cômica, de não ter medo de falar sobre assuntos difíceis ou considerados tabus e, principalmente, de fazer a audiência amar personagens falhos. Depois de ter seu eu-lírico lidando com drogas durante 8 anos, faz total sentido que ele foi parar na prisão. É então que a roteirista pega seus melhores artifícios e cria uma nova série – ainda melhor do que aquela que colocou seu nome em destaque. Não é à toa que todos estão falando da nova estreia da Netflix – a série é realmente tão boa assim. E ela fica ainda mais interessante para os que assistiam Weeds, porque é impossível não traçar paralelos entre as duas. Nós temos o mesmo tema principal desenvolvido de maneiras opostas e duas protagonistas muito parecidas, embora num primeiro momento elas pareçam bem diferentes.
Mas antes de começar a argumentar sobre o assunto, eu preciso que você preste muita atenção. Se você ainda não assistiu a temporada toda de Orange is the New Black, PARE AGORA. Não continue lendo, porque eu não quero ser responsável por estragar a sua experiência vendo a série. Eu quero que você aprecie a produção spoiler-free. E acredite, você tem uma ótima jornada pela frente. A sacanagem de ter todos os episódios disponíveis de uma só vez é que o termo “não conseguir parar de assistir” se torna bem literal. Junto com a protagonista, você vai entrar numa outra realidade, a qual vai te fazer apreciar tanto as menores coisas da vida (como a privacidade no seu banheiro), como abrir sua cabeça para assuntos mais delicados (como não rotular as pessoas ou as julgar por sua aparência). Então salve essa página nos seus favoritos e vá ser feliz na Netflix. Depois volte pra terminar de ler o texto 🙂
Lichfield e Agrestic: dois tipos de prisões diferentes
[Spoilers de ambos seriados pela frente!] Como eu tinha dito, o tema das duas séries é o mesmo: a prisão. Mas Orange e Weeds começam a trilhar por caminhos opostos ao desenvolver esse conceito. Enquanto Agrestic era uma prisão metafórica com a sua cidade perfeita, Lichfield é uma prisão bem real. A graça de Weeds era ver a sujeira debaixo dos panos. Ver aqueles cidadãos “perfeitos” terem seus segredos e agirem de maneira ética e moralmente errada. Em Orange é o contrário: você já chega no lugar sabendo que alí ninguém é santo, e fica surpreso e envolvido na trama quando percebe que aquelas prisioneiras não são o diabo encarnado. Elas são apenas pessoas que cometeram erros na vida e foram pegas fazendo isso.
Ambas séries também são de grande peso numa análise sociológica. Weeds lidava com uma mulher inserida num universo masculino, sempre colocando Nancy em situações em que questões de gênero podiam ser debatidas. Orange é um presídio só de mulheres, então o fator que toma conta da narrativa são as raças. Todas as mulheres têm total noção que elas vivem num sistema da década de 50, na qual existem 5 grupos: as brancas, as negras, as latinas, as mais velhas e as outras. É um sistema que funciona no lugar, e é muito interessante de ver como cada indivíduo age no seu grupo, como cada grupo reage a um acontecimento, o que um pensa do outro e como situações universais – como morte – pode juntar todos eles. Mesmo que não seja o debate principal, questões de gênero ainda são mostradas (como o relacionamento de policiais com prisioneiras e até mesmo na parte administrativa do presídio), assim com as diferentes raças tinham lugar em Weeds.
Sexualidade é algo que nunca incomodou a criadora das séries, e o resultado são os vários affairs de Nancy, incluindo aquela namorada durante sua estadia na prisão. Em Orange, “aquela namorada da prisão” é basicamente a trama toda, e o resto dos relacionamentos fazem com que o homossexualismo não seja nada controverso. Pra não deixar o texto maior do que ele já é, vou focar aqui na questão homossexual. O que eu gosto muito da Jenji é que ela nunca quer dar lição de moral; ela coloca personagens com pensamentos diferentes e deixa pra gente debater (mas ela não deixa de dar sua opinião. Lembram da citação “Vai fazer terapia, cara”?). Daí você pode concordar com a Pennsyltucky e achar que ser lésbica é uma abominação, ser como o Healy com uma estranha obsessão por elas, ou ficar bem de boa como a maioria e não se importar com a opção sexual dos outros.
Weeds manteve bem a sua audiência até a 3ª temporada, mas sofreu um baque dali por diante. Uma das razões foi porque a série mudou seu tom, e o público estranhou esse novo jeito de ser. Até então, o programa era uma sátira moralmente contraditória do cotidiano. Só que a partir da 4ª temporada, o foco ficou bem maior na psique da protagonista e da sua família no lugar dos conflitos externos. A produção já tinha mostrado que Nancy tinha suas falhas, mas isso toma ênfase no novo rumo. Com Orange, essa análise interna vem com tudo desde o começo. Afinal de contas, há um limite nada abrangente de conflitos externos que uma pessoa pode ter na prisão. Tudo se resume na cena do banheiro com a cadeirante insolente quando Piper desabafa: “Eu sei como é fácil de se convencer de algo que você não é. E você pode fazer isso lá fora. Dá pra seguir em frente. Basta se manter ocupada pra não ter que encarar quem você é. As outras pessoas não são o pior da cadeia. A parte mais assustadora é encarar quem você realmente é”. Se a Jenji achou a música perfeita lá nos anos 60 para a abertura de Weeds, ela resolveu fazer algo personalizado para sua nova criação. Regina Spektor escreveu e fez a performance de uma música tema brilhante, a qual diz tudo sobre o seriado, e que deixa esse argumento bem claro: “Taking steps is easy / Standing still is hard” (“Dar passos é fácil / Ficar parado é difícil”).
Nancy era um tubarão – ela não parava um minuto, e isso fazia com que ela se metesse naquelas confusões impossíveis. O resultado foi que demoramos um bom tempo pra saber exatamente o quanto falha a matriarca realmente era. No entanto, Piper não tem pra onde fugir, e nós já conseguimos ver bastante desse lado nada perfeito dela. Basicamente, não torçam pelo casal Piper/Larry, porque aquela Piper que entrou na prisão não é a mesma que vai sair (seja lá quando ela sair. Porque né, depois do final de temporada…). E assim como a família de Nancy também tinha destaque na história, a grande família simbólica de Piper ganha seus minutos na tela. Em cada episódio descobrimos sobre o passado das prisioneiras, nos fazendo gostar e torcer por elas (ou odiar uma em particular).
Mesmo com essas diferenças, há alguns fatores que continuam os mesmos nas duas obras: o humor negro, diálogos bem desenvolvidos, uma trilha sonora exemplar e, o mais importante, as protagonistas.
Piper Chapman e Nancy Botwin: a boa cidadã não é tão diferente da mãe traficante
Jenji Kohan adora uma anti-heroína. Ela adora uma mulher egoísta, narcisista e viciada em adrenalina que não sabe o que quer (além de se sentir bem e estar na melhor situação possível). Pela descrição, essa mulher parece um monstro impossível de ser amada. Mas Nancy e Piper são assim. E você ama as duas (o porquê disso merece um texto só dele).
Com a Nancy, era mais fácil de ver essas falhas. Ela foi uma mãe que resolveu começar a vender maconha para manter o padrão de vida da família no lugar de arranjar um emprego, e seu egocentrismo ficava mais aparente toda vez que ela não aproveitava uma chance de voltar para a normalidade. Piper parecia ser aquela loira boazinha, mas nós sabemos melhor. O seu egoísmo e narcisismo fica evidente tanto em flashbacks (com o começo da purificação corporal – e com o fim premeditado) como na própria prisão (ela acha que é a única que liga para o funeral da Tricia e escolhe sua reputação – aka a história da galinha – no lugar de uma ligação importante).
As duas também não tem um grande porte físico pra confiar quando as coisas saem do controle, então elas fazem muito o uso de alianças e de soluções criativas. Elas culpam os outros por seus erros, falam demais nas horas erradas, são orgulhosas, manipuladoras e tomam vantagem de quem gosta delas (mesmo que inconscientemente). Sim, tudo isso está por baixo daquelas carinhas bonitinhas. A verdade é que elas nunca foram pessoas “normais”. Não foi um acontecimento (a morte do marido ou aquela única vez que ela carregou uma mala com dinheiro) que mudou o jeito delas serem. Elas sempre foram viciadas em adrenalina, sempre quiseram aventuras, mas ficaram alguns anos hibernando em vidas convencionais. E é isso que as torna interessantes e perfeitas pra protagonizar séries tão complexas quanto Orange is the New Black e Weeds. Elas acordaram – e a gente nunca sabe o que esperar dessas duas 🙂
Trackbacks / Pingbacks