O filme Melancolia trata de um tema difícil e, ao mesmo tempo, comum aos nossos tempos, a depressão. O melancólico cineasta dinamarquês Lars von Trier faz uso do tema para construir o seu disaster movie (filmes catástrofe) de arte. No lugar de mirabolantes cenas de destruição, o diretor preferiu usar o fim do mundo como alegoria para discutir esse que é considerado por muitos como o mal do século.
Depressão é uma doença seríssima. Para uma pessoa acometida desse mal, a notícia da iminência do fim do mundo, proporcionada pela descoberta de um planeta que está em uma inevitável rota de colisão com a Terra, pode ser recebida com um imenso alívio, acompanhado da certeza de que todos os seus problemas serão, afinal, solucionados pelo singelo motivo de que simplesmente deixarão de existir, bem como tudo ao seu redor, restando apenas a ‘paz’ gerada pela consumação de todas as coisas. E atire a primeira pedra quem nunca na vida teve um lampejo semelhante de devaneio escapista, ainda que apenas por um momento. Quase sempre esse pensamento logo é substituído pela esperança de que a má fase vai passar e a vida vai, enfim, melhorar… Quase sempre. O cultuado cineasta dinamarquês Lars von Trier, melancólico por natureza, e habituado com as polêmicas em seus filmes e em suas declarações, propõe, com este sensível longa convenientemente batizado de Melancolia (que é o nome dado ao gigantesco corpo celeste que poderá se chocar com o nosso) uma profunda discussão acerca da vontade de viver e o desespero diante do fim em paralelo com o desespero de viver e a vontade de que tudo termine, aqui ilustrados pelas duas irmãs que conduzem a narrativa, Claire (Charlotte Gainsburg) e Justine (Kirsten Dunst). Claire quer que o planeta intruso vá embora. Justine não vê a hora de ele chegar.
É na festa de casamento de Justine que conhecemos o núcleo familiar das irmãs: seus pais separados, vividos por John Hurt e Charlotte Rampling, o abastado marido de Clair (Kiefer Sutherland), o filho pequeno do casal (Cameron Spurr) e o noivo de Justine, (Alexander Skarsgård). Há ainda o patrão da noiva (Stellan Skarsgård, pai de Alexander na vida real) e seu funcionário recém-contratado (Brady Corbet). Estes personagens trocarão farpas o suficiente para que suas máscaras caiam, deixando transparecer a tremenda farsa que é aquela confraternização que, na verdade, nada tem a celebrar. Vagarosamente vamos percebendo que há algo errado com Justine, a julgar não apenas por suas próprias atitudes como também pela preocupação daqueles que a cercam. O cunhado, que pagou a festa, e que ainda por cima está sendo realizada em sua própria mansão, não para de reclamar do dinheiro que gastou. Ele conhece a instabilidade emocional da noiva e não enxerga um futuro promissor para aquela união matrimonial. Opinião compartilhada também pela mãe de Justine, que vê no casamento uma instituição falida, motivo para confrontação verbal com o ex-marido. Ele não tem muitos argumentos a seu favor, pois sua promiscuidade é conhecida por toda a família. Os insultos vindos de ambas as partes são inevitáveis. Tudo isso na frente da própria noiva e de todos os convidados, no melhor estilo ‘lavando a roupa suja’ (remetendo também àquele inquietante longa dos tempos do Dogma 95, Festa de Família, do conterrâneo Thomas Vinterberg). Ainda surgem outros percalços, envolvendo o noivo, o patrão… E quando ouvimos Justine confidenciar para sua irmã: “Eu sorrio, sorrio e sorrio”, concluímos que, se ela está dizendo isso com tanta ênfase, é porque não é de seu costume fazê-lo. Justine tem depressão.
As situações constrangedoras que se sucederam em sua desastrosa festa de casamento só desencadearam algo com o qual Justine já lidava desde sempre em sua vida, tendo em vista os comentários da irmã, da mãe, do cunhado e até do noivo. A depressão, que esteve camuflada por um tempo, veio à tona novamente. No fim da ‘festa’, a notícia da chegada do planeta Melancolia começa a ganhar destaque, e deixa clara ao espectador a metáfora sugerida pelo diretor acerca do corpo celeste prestes a cobrir a Terra tal qual um sentimento profundo de tristeza pode se abater sem aviso sobre uma pessoa. A segunda metade do longa se concentra justamente nas já citadas reações opostas das irmãs diante do inevitável fim. É quando os diálogos, mais especificamente entre as duas, se desenvolvem de forma até bucólica, expressando seus devaneios existenciais e inquietações filosóficas acerca do sentido da vida.
Ao ver seus dilemas, se é fácil entender as motivações de cada uma das duas irmãs em relação ao que as espera no horizonte, de onde já se enxerga o gigantesco astro se aproximando, muito desse mérito se deve ao desempenho de suas intérpretes. Kirsten Dunst (vencedora da Palma de Ouro de Melhor Atriz no Festival de Cannes de 2011 por este papel) confere fragilidade à Justine durante a primeira hora de projeção, situação que muda para uma mórbida comodidade quando passa a ter a certeza de que o fim está próximo e trará com ele seu tão desejado refrigério. Charlotte Gainsburg, por sua vez, faz Clair traçar um caminho oposto, em que a outrora bem resolvida esposa e mãe é tomada pela aflição com a chegada do evento que acarretará a irremediável interrupção de tudo o que conhece.
Em alguns momentos da projeção, o já conhecido perfeccionismo de von Trier se faz sentir mais do que em outros, como na longa construção visual que abre o filme, em que presenciamos um literalmente melancólico mosaico, belissimamente concebido em sua fotografia, ao som de Tristão e Isolda (memorável peça musical de Richard Wagner), em uma sucessão de imagens que se dá de forma poética, surreal e monumental. Você pode ver essa idílica sequência logo abaixo. Visualmente grandioso, o longa apresenta, todavia, como seu maior mérito, a discussão que propõe. Não é um filme catástrofe com impressionantes cenas de destruição, longe disso. É um profundo estudo sobre a depressão, mostrado com uma beleza plástica incontestável, é bem verdade, mas sem desviar a atenção de seu tema.
Melancolia é um filme adulto, contundente, extremamente reflexivo e, por isso mesmo, merece toda a atenção. A despeito do pessimismo inerente à história, uma obra cinematográfica que exemplifica com tal propriedade o drama vivido por quem é acometido desse mal, a depressão, pode ajudar muitos a verem a questão com a seriedade devida. E, se esta obra nos mostra, de um lado, o fim do mundo como uma acolhedora solução para todos os problemas, ao mesmo tempo vemos, do outro lado, o desespero de quem sente na iminente tragédia a interrupção brusca de todos os seus sonhos e a consequente impossibilidade de realizá-los. Eis o contraste das irmãs. As duas querem paz e felicidade, mas de maneiras absurdamente contraditórias. Se este lúgubre e inquietante longa-metragem realizado, contudo, de maneira tão bela e sensível, puder contribuir para amenizar um estado de depressão de quem o assistir, então ele já terá deixado o seu legado para a humanidade, enquanto ela existir… Apesar do nome, e do final chocante (literalmente), Melancolia pode, sim, trazer uma interpretação positiva, a de que a vida, apesar de tantos percalços pelos quais se pode passar, ainda vale a pena ser vivida.
Sobre o autor: Formado em Comunicação Social – Jornalismo, Roberto Oliveira desde sempre vem exercendo a escrita em sites nerds/geeks e contribuindo para a semeadura da Cultura Pop. Cinéfilo inveterado, também é radialista e colaborou com a galera do Serial Cookies em várias ocasiões, inclusive nas Lives do Oscar, que já estão se tornando tradição! Defende a paz entre marvetes e decenautas e curte quase todas as ramificações da produção audiovisual, com destaque para ficção científica, fantasia e, claro, os super-heróis, e “viaja” com histórias que envolvam viagens no tempo!