*****Obs: O texto a seguir pode conter Spoilers das obras citadas*****

Ao ser questionado se Blade Runner 2049 não havia sido hostil demais com as personagens femininas, o diretor Dennis Villenueve respondeu “O cinema é um espelho da sociedade. Blade Runner não é sobre o amanhã; é sobre hoje. E me desculpe, mas o mundo não é bom com as mulheres”. Se substituirmos “cinema” por “arte”, e alterarmos o foco de hostilidade às mulheres para problemas da humanidade, veremos que a afirmação de Villenueve nos reporta o caráter cíclico que as imperfeições humanas possuem; e como se adaptam aos tempos. Esses que são delimitados por um fator em especifico: As tecnologias do momento. As quais costumam anular problemas antigos, criar novos, ou adapta-los para o seu próprio contexto. Junto a isso vem o receio das mudanças que ela trará, se serão boas ou más. Esta postagem procurará mostrar como essa relação medo-tecnologia já foi abordada por inúmeros meios e formatos culturais; cada um evocando problemas de suas épocas e ao mesmo tempo, problemas do homem e sua natureza.

Denis Villenueve dirigindo as atrizes Robin Wright e Sylvia Hoek no set de Blade Runner 2049

Um dos medos que mais marcam presença na cultura popular, principalmente em obras de ficção lançadas na primeira metade do século XX; sendo criticamente influenciadas pelos contextos de fim das políticas imperialistas do século XIX, e as experiências traumáticas da Segunda Guerra Mundial com as ascensões de regimes autoritários; é o medo da tecnologia nas mãos de pessoas poderosas, de grande influência no contexto político-social, e de moral incerta. Esse medo marca presença em duas obras seminais da ficção cientifica quando se fala em futuros distópicos: Admirável Mundo Novo (1931), do inglês Aldous Huxley e 1984 (1948), do indiano/britânico Eric Arthur Blair, vulgo George Orwell.

Em 1984 o medo de Orwell reside na possibilidade de que a tecnologia (o sistema do Big Brother) atue como um infindável combustível para a manutenção crônica de certas elites no poder. Sendo a tecnologia aliada em um regime de subjugação auxiliado por meios, mecanismos e embasamento histórico; ela possibilita que os tiranos administradores do sistema sempre estejam um passo à frente dos únicos a verem o panorama da situação em que se encontram.

Cena do filme Nineteen-eighty-four(1984) de Michael Radford, baseado no livro de George Orwell.

Já o medo de Huxley é voltado para a possibilidade de o emprego da tecnologia, atuando em diversos ramos da vivencia humana, funcionar como um grande ópio para a sociedade; deixando as pessoas tão absortas e dopadas com futilidades e o conforto hedonista de suas vidas, que não lhes fosse mais conveniente relegar a mínima atenção às necessidades básicas de sobrevivência de outras civilizações/pessoas/culturas. Aldous também compartilha do medo de Orwell da posse da tecnologia por elites supremacistas, já que um dos conceitos mais brutais de seu livro é a institucionalização (conceitual, biológica e tecnológica) de uma hierarquia social onde existem “cidadãos de segunda classe”; condenados desde o nascimento a ter seu propósito de existência reduzido à servidão às castas privilegiadas da sociedade em questão.

Ilustração das castas sociais presentes em Admirável Mundo Novo.

 Um medo cada vez mais presente na ficção pós-moderna contemporânea, é o medo que a tecnologia, mesmo estando em evolução constante, seja incapaz de sanar nossas carências e desejos afetivo emocionais, visto a complexidade das relações humanas. Isso acontece pois o humano contemporâneo; estimulado pela possibilidade de ter tudo ao seu modo e desejo; cenário possibilitado pelas redes sociais que direcionam tudo que é apenas do gosto do indivíduo para ele; tem seu ego inflado. Tais fatores fazem com que esse ser encontre-se indefeso para lidar com situações de frustração, diferenças e personalidades de outros indivíduos. Logo, obras que abordam relacionamentos são as grandes privilegiadas para tratar do assunto. A tecnologia nessas obras atua inicialmente como uma substituta da presença humana, sem as falhas que desagradam quem a possui. A curto prazo se mostra quase milagrosa por assemelhar-se ao que o(a) protagonista definiria como o(a) companheiro(a) ideal. Contudo a longo prazo, a tecnologia se mostra incapaz de ocultar sua artificialidade e suprir todas as necessidades emocionais de seus donos, algo que nem pessoas de carne osso conseguem.

Obras como Ela (2013), de Spike Jonze, e Blade Runner 2049 (2017) de Dennis Villenueve, mesmo à primeira vista não podendo ser mais antagônicas em seus gêneros e abordagens cinematográficas, dialogam quando o tema é a tentativa de humanizar a relação homem-máquina. O primeiro nos mostra um futuro próximo onde a tecnologia é incapaz de emular e satisfazer simultaneamente o gosto e necessidades emocionais humanas, ao passo que o segundo nos mostra que mesmo satisfazendo todas as necessidades humanas, a tecnologia jamais camufla totalmente sua artificialidade, fazendo com que seus feitos sejam reduzidos a nível superficial; assim como as carências e personalidades daqueles que a possuem.

Blade Runner 2049 | Her

Outro medo muito presente na ficção atual, principalmente através da série de TV britânica de antologia Black Mirror (2011- presente) de Charlie Brooker, é o de que a tecnologia seja apenas um meio para a degradação moral humana. Os episódios (cada um possuindo uma estória própria), independentemente do tipo de abordagem, linha narrativa, ou gênero, possuem uma linha de desenvolvimento bem definida: Sempre há temas que envolvem problemas humanos, uma nova tecnologia e como ela acentua esses problemas a um nível absurdamente preocupante e aterrorizante em seu desfecho.

Peguemos o episódio White Christmas (E4S2), considerado um dos melhores da série, como exemplo. Temos os temas: A força do rancor, sentimento de possessão, fragilidade emocional entre outras vertentes passionais da anatomia comportamental humana; e manipulação governamental auxiliada por brechas jurídicas. Temos a linha de desenvolvimento: Em um cenário onde as pessoas, através de um dispositivo implantado no sistema neural, podem escolher não ver certas pessoas, se assim lhes convém; e onde essas podem viver em um mundo artificial encomendado; um arquiteto desses mundos precisa extrair a confissão de um crime passional de um suspeito sem que este se dê conta disso. E temos o desfecho aterrorizante: O arquiteto extrai a confissão, e descobrimos que ele a fez diante de um acordo judicial para livra-lo de uma pena na prisão por um crime do passado. Mas ele que manipulou o suspeito, também é manipulado; pois sua pena vai de regime fechado, a uma completa exclusão do mundo social, através do bloqueio de visualização de outras pessoas através da tecnologia implantada.

Episódio White Christmas

Considerando que a série foi lançada em 2011, um ano depois do caso WikiLeaks vir à tona, e teve o sucesso alcançado após a segunda temporada, lançada em 2013, ser disponibilizada no serviço de streaming Netflix, data próxima do caso Snowden; é sensato concluir que sua popularidade advém, além de questões qualitativas, de uma crescente angustia do público em geral perante o uso da tecnologia para fim escusos, ou, que viabilizem facetas ainda mais sombrias da humanidade, e o mais preocupante ainda, que o mesmo mal uso de hoje, se repita amanhã, mas com engrenagens muito mais letais.

E temos o medo que ronda todos os medos já citados: o medo de que a descoberta de uma tecnologia seja mais celebrada que o seu uso. Esse medo é compartilhado pelos grandes autores da ficção cientifica futurista H.G. Wells, tanto no livro quanto nas adaptações de A Máquina do Tempo (1895), e Philip K. Dick, tanto no conto como no filme Minority Report (1956) e o mesmo com Blade Runner -baseado no livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1966) do autor.

A Máquina do Tempo(1960) de George Pal, baseado no livro de H.G. Wells | A Máquina do Tempo (2002) de Simon Wells & Gore Verbinsk, também baseado no livro de H.G. Wells

Na obra de Wells (adaptada duas vezes para o cinema, em 1960 por George Pal e em 2002, pelos diretores Gore Verbinski e Simon Wells, bisneto de H.G.) o protagonista em sua viagem tem todo o estupor do advento da máquina dizimado pela descoberta de que o passado e futuro da raça humana nada mais são do que ciclos interligados pela barbárie da espécie, mudando apenas o meio(tecnológico) que utilizam para concretiza-la. Já na obra, e principalmente nas adaptações, de K. Dick; esse medo envereda pelo caminho da frieza que os adventos trazem consigo. Em Blade Runner(1982) dirigido por Ridley Scott, a magia da réplica perfeita[1], se não superior, a de um humano; é totalmente ofuscada por essas serem utilizadas como escravos para exploração de colônias interplanetárias (conceito que novamente liga passado, futuro e os ciclos de erros já cometidos por nossa civilização). Em Minority Report (2002) (dirigido por Steven Spielberg), a tecnologia dos Pré-Cogs[2], feita a base de exploração do dom da premonição de três gêmeos, livra a humanidade de conviver com a responsabilidade de gerir o sistema judiciário, tornando tudo muito automatizado, insensível e raso.

[1] Em Blade Runner réplicas humanas são chamados de Replicantes, cyborgues biológicos com capacidades como força, raciocínio, agilidade e etc, aprimorados para seus trabalhos pré-designados de fábrica.

[2] Em Minority Report a tecnologia Pré-Cog reside no fato de três irmãos gêmeos com capacidades de prever crimes que irão acontecer, e assim auxiliam em prisões preventivas.

Blade Runner: O Caçador de Andróides (1982) de Ridley Scott, baseado no livro Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas? de Phlip K. Dick | Minority Report (2002) de Steven Spielberg, filme baseado no conto de Philip K. Dick

Eu temo o dia em que a tecnologia vai ultrapassar a interatividade humana” falou Albert Einstein. A cotação proferida pelo renomado físico pode ser a síntese de todos os medos apontados neste texto. Pois em suma, a interação pode ser uma analogia para empatia entre os humanos. Se superada, a tecnologia sob a tutela de quem a usa trará a perdição envolta pela insensibilidade. Sendo assim concluímos que o medo não reside sob a tecnologia, mas sim sob seu portador; algo que concede um respaldo atemporal a uma das máximas do filósofo Thomas Hobbes, pois se “O homem é o lobo do homem”, a tecnologia são seus dentes.

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 Postagem colaborativa de Yuri A.F Marcinik: estudante de jornalismo da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), atuante no ramo da fotografia e amante do cinema desde que se conhece por gente.