(com spoilers)

Flocos de neve caem suavemente sobre a planície naquela noite de inverno. Uma menininha, ao vislumbrar pela janela de seu quarto a alva paisagem, pergunta: “Vovó, por que neva?” A simpática velhinha, então, começa a contar para sua neta a história de um homem que surgiu naquela região há muito tempo e que… tinha tesouras no lugar das mãos. Assim, tem início uma das mais belas fábulas da história do cinema, cuja apurada estética visual, que bebe na fonte do Expressionismo Alemão, somada às primorosas interpretações, sensível narrativa e sublime mensagem a tornaram um dos filmes mais memoráveis do aclamado cineasta Tim Burton. Mais do que isso, na opinião de muitos de seus fãs, é simplesmente sua obra-prima.

Enriquecido por uma inspiradíssima e angelical trilha sonora, evocando corais de crianças que dão ao longa o seu tom impecável de conto de fadas, Edward Mãos de Tesoura, lançado nos EUA próximo ao Natal de 1990 (no Brasil chegou em Maio de 1991), cuja história é ambientada em um bairro suburbano de uma cidadezinha no melhor estilo american dream, com suas coloridas moradias… e uma construção gótica e dissonante no alto do morro, nos leva a prezar por alguns conceitos, como a aceitação das diferenças e a descoberta de qualidades que transcendem as aparências.

Casada e mãe de dois filhos, a simpática vendedora da Avon Peg (Dianne Wiest), depois de um dia não muito produtivo, resolve oferecer seu catálogo a quem estiver morando na exótica casa que o retrovisor de seu carro mostrou, localizada lá no pico da montanha. Ao atravessar os jardins do que parece ser um castelo abandonado, ela se maravilha com os arbustos podados em forma de animais, e um deles… em forma de mão. Lá dentro ela encontra, escondido por entre as sombras, como um animalzinho assustado, um rapaz magro que, pouco a pouco, vai se aproximando e se revelando ser extremamente pálido, com cicatrizes no rosto, cabelos despenteados e vestindo uma roupa de couro preta. Em suas mãos, algo semelhante a navalhas.

A descrição acima poderia ser a de uma criatura extremamente atemorizante, um vilão de um filme de terror, um ser vil que utilizaria seus “dedos” afiados e pontiagudos para levar pânico a quem passasse pelo seu caminho. NADA DISSO. Por dentro dessa embalagem apavorante, se revela um jovem com a personalidade de uma criança, ingênuo, dócil, tímido, carente do amor paternal que recebia de seu criador.

“Ele não acordou?” – Edward

Em flashbacks, é mostrado que o cientista que lá vivia era muito solitário e sentia falta de um ambiente familiar. As máquinas que ele criava tinham aspectos primariamente humanóides, como os cortadores de doces. Ao segurar um cookie em formato de coração, e encostá-lo no peito de um de seus operários mecânicos, ele reconhece ser esse o elemento imprescindível para sua próxima criação. Assim, o inventor criou Edward, e o educou como se fosse seu filho. Provisoriamente, no lugar de mãos, tesouras com as quais a admirável criatura, muito além de cortar doces, era capaz de fazer grandes e criativas proezas, como esculpir verdadeiras obras de arte em áreas verdes ou blocos de gelo.

Mas o cientista percebeu que, embora as tesouras tenham tornado o jovem talentoso, elas o desproviam de atos simples que só o tato pode proporcionar. E quando o inventor estava prestes a presenteá-lo com suas mãos definitivas… ele dorme, vítima de um infarto, e não mais acorda. Em seu trabalho derradeiro no cinema, Vincent Price (que viria a falecer em 1993), um dos ícones do terror dos anos 1950 e 60, sempre em papéis vilanescos, se despediu da telona com sua comovente interpretação deste cientista de bom coração.

O rapaz (vivido com extrema sensibilidade por Johnny Depp, e cujo visual foi inspirado, em parte, no de Robert Smith, vocalista da banda The Cure) diz a Peg que se chama Edward e dá a entender que, desde a morte de seu criador, mora naquele casarão escuro sozinho. Peg, compassiva e solidária, resolve leva-lo para sua casa. Trata-se de uma fábula e, como tal, a obra se propõe a criar situações por meio de alegorias e metáforas que versam sobre as mais diversas facetas do comportamento humano diante do que se convencionou ser interpretado como “estranho”, assim rotulado apenas por não se encaixar nos padrões pré-estabelecidos por uma sociedade que precisa enxergar além do que os olhos podem ver. Peg, desde o início, consegue enxergar, em Edward, a pureza de sua personalidade e, ao chegar em casa, lhe mostra fotos de sua família: seu esposo Bill (Alan Arkin), seu filho caçula Kevin (Robert Oliveri) e… sua filha Kim, vivida por Winona Ryder em todo o esplendor de sua radiante beleza.

Sabe aquela pessoa legal que você conheceu na vida, mas em uma circunstância não tão legal, e que pode ter causado tanto a você quanto à ele(a) aquela “má impressão” inicial? Quanto tempo vocês levaram para se conhecerem mais adequadamente e, aí sim, constatarem haver um certo nível de entrosamento? Peg acomoda Edward no quarto de Kim, acreditando que ela só voltaria para casa dali a alguns dias, pois estava acampando com seus amigos. Só que ela volta antes, e se depara com um estranho muito estranho em seu quarto que, por sua vez, igualmente assustado, acaba furando o colchão de água com muitas tesouradas, numa cena que, à primeira vista, pode até ser cômica, mas que revela a primeira, e horrível, impressão que Kim teve de Edward.

Felizmente, a trama evolui e, graças à sua ternura, Edward acaba sendo praticamente adotado pela família de Peg, conquistando a simpatia de Bill, Kevin e até mesmo de Kim. Aquela má impressão já ficou para trás. Por conta de seu “talento com as mãos”, ele se torna uma personalidade popular no bairro, podando e esculpindo as plantas dos vizinhos e, com isso, redecorando todos aqueles jardins. Também passa a aparar os pelos dos cachorros e até a cortar os cabelos das moradoras. Uma delas, Joyce (Kathy Baker), se insinua para ele de uma maneira um pouco mais incisiva, ao passo que ele reage com uma rápida saída pela tangente. Joyce é o estereótipo da pessoa que se aproxima de alguém não por amor autêntico, mas por interesse, pelo status, ou pela simples satisfação momentânea.

Outro detalhe que vale ressaltar naquela “vizinhança perfeita” são as supostas demonstrações de ajuda. Em três ou quatro ocasiões, Edward ouve: “conheço um médico que pode lhe ajudar.” Mas as pessoas apenas falam, NINGUÉM FAZ NADA em relação a isso, com exceção de Peg, verdadeiramente disposta a incluí-lo na sociedade, sem querer, com isso, se aproveitar de seu talento. Já o petulante e enciumado namorado de Kim, Jim (Anthony Michael Hall), vê no ingênuo rapaz a oportunidade para consolidar seu plano de roubar os próprios pais. Com a ajuda de Kim, ele é “convencido” a participar do roubo. A partir deste momento o filme abandona sua paleta de cores vivas para priorizar uma ambientação ainda mais gótica, sombria e melancólica, tingindo aquele pacato subúrbio com o imprevisível manto escuro da noite.

É quando a confiança que Edward havia ganho de toda a população se perde, por conta do roubo malsucedido do qual foi induzido a participar, e pelo qual levou a culpa injustamente. Joyce, por exemplo, diante dos novos fatos, diz algo do tipo: “Eu sabia que tinha alguma coisa errada com ele.” Nem vou citar a fanática religiosa que vivia dizendo que ele era um emissário do… É perceptível a dificuldade de comunicação de Edward, um homem de pouquíssimas palavras, devido à sua falta de vivência no mundo exterior, e que se ressente por não conseguir se expressar o suficiente a ponto de conseguir explicar a situação na qual foi envolvido, bem como expor os sentimentos que nutre por Kim. Mas Peg, aquela mãe tão amorosa e acolhedora, não abre mão da Festa de Natal da família e, para ela, Edward faz parte da família.

Ao ser indagado por Kim acerca do motivo de ter aceito participar do roubo, o rapaz diz simplesmente: “Porque você me pediu.” O semblante dele deixa estampado para ela o que ele sente: um amor que ele sabe que não pode ser consumado. Durante todo o longa vemos Edward capaz das mais extraordinárias façanhas com suas tesouras, mas incapaz de uma socialização plena, devido aos cortes que pode provocar em qualquer um à sua volta com simples gestos involuntários. Por fim, é o que acaba acontecendo.

Após um lamentável mal-entendido, proveniente de um acidente não intencional que causou, Edward, profundamente entristecido, caminha sem destino, e se despe, literalmente, de sua “humanidade”, representada pela roupa branca que estava usando desde que havia sido adotado por Peg e sua família. Os moradores daquele bairro, a princípio amistosos, agora o consideram unanimemente uma ameaça que não poderia mais conviver ali, no mesmo espaço que eles, e vão ao seu encalço.

Kim: “Me abraça?”

Edward: “Não posso.”

Após esse diálogo acima, o que se segue é um dos abraços mais comoventes já vistos na telona, nos trazendo, inclusive, em plena década de 2020, uma improvável, mas muito bem-vinda analogia à pandemia e à quarentena. É justamente quando não podemos demonstrar carinho pelas pessoas que amamos que essas demonstrações se tornam ainda mais especiais. Sempre que pudermos, abracemos aqueles que são importantes para nossas vidas. Kim, se esquivando das lâminas, consegue que Edward a abrace, e a imagem que se forma desse gesto tão sincero, já é clássica.

É tocante perceber a esta altura o emaranhado de sentimentos conflitantes na mente de Peg, quando diz à sua filha que, ao trazer Edward para sua casa, não levou em conta as consequências e, pensando bem, talvez seja melhor que ele se vá, pois, lá, em seu castelo, pelo menos ele estará seguro. Após o trágico desfecho na gótica construção no topo da montanha, Kim se despede, deixando claro a Edward que, a despeito de sua aparência, o seu coração a conquistou. Eles jamais se esqueceriam um do outro, pois, enquanto ela, já velhinha, termina de contar a história dele à sua neta, ele, sem ter envelhecido nadinha, continua a esculpir em blocos de gelo momentos belos que vivenciou com ela por perto. Enquanto suas lâminas cortam, as lascas se espalham pelo ar, formando flocos que fazem Kim se lembrar:

“Às vezes ainda me vejo dançando na neve.” – Kim

Sinta o maravilhoso clima natalino que envolve a cena mais célebre desta fantástica fábula, embalada pela mais linda trilha sonora já composta por Danny Elfman.

Assim como aconteceu com a criatura de Frankenstein, o Corcunda de Notre Dame, o príncipe de A Bela e a Fera, o homem-peixe de A Forma da Água, o menino David de A.I. – Inteligência Artificial e tantos outros personagens indissociáveis à Cultura Pop, Edward foi uma criatura incompreendida pelo que aparentava ser, pela sua embalagem, pelo seu exterior. Ao longo de sua história, contudo, ele conheceu uma mãe que o acolheu, uma família que o adotou, e uma jovem que verdadeiramente o amou, pessoas que enxergaram quem ele realmente é, uma alma pura, possuidora de um coração extremamente bondoso.  

O personagem-título desta fabulosa obra-prima traduz as angústias de infância de seu diretor e alter ego, Tim Burton que, de menino recluso, com dificuldade de comunicação e se sentindo um estranho no ninho, se transformou em um dos cineastas mais celebrados de Hollywood, concebendo produções estilizadas que dão voz a todos que, por algum motivo, e em algum momento da vida, se sentiram na condição de “diferentes”. Estamos vivendo em plena época da inclusão, em que as diferenças finalmente estão sendo mais aceitas e vistas com bons olhos. Hoje, Burton, bem como muitos outros grandes nomes da indústria cinematográfica, é inspiração para todo aquele que quer se ver representado na tela onde, como sabemos, por mais que apresente narrativas repletas de fantasia, elas ainda assim são o reflexo de nossas vidas. Passados trinta anos de seu lançamento, Edward Mãos de Tesoura continua a nos convidar para enxergarmos além das aparências e, com isso, direcionarmos um olhar mais complacente e benevolente ao próximo, que pode ser a pessoa que, metaforicamente, esculpirá uma silhueta sua em um bloco de gelo e lhe dará a oportunidade de se ver dançando na neve.