“Criatividade é o relacionamento entre um ser humano e os mistérios da inspiração”, diz Elizabeth Gilbert. No livro “A Grande Magia”, a autora traz sua perspectiva da criatividade como sendo um tipo de identidade consciente, cujo objetivo é se manifestar em nossa dimensionalidade por meio de um canal humano. Partindo dessa visão, poderíamos considerar a inspiração como uma abertura, e o exercer da criatividade como um acesso a conteúdos existentes no inconsciente coletivo do cosmos. O que aconteceria então se você tivesse acesso a uma fonte artística de outra linha do tempo? Qual seria a moralidade dessa manifestação? 

Jack Malik (Himesh Patel) é um cidadão britânico comum que trabalha no setor de estoque de um mercado, mas sua verdadeira paixão e talento é para a música; ele está há anos tentando emplacar na carreira com apoio da amiga e empresária Ellie (Lily JamesCinderella Live Action – 2015, Mamma Mia 2 – Here go Again – 2018). Prestes a desistir da música e de qualquer tentativa no ramo, ele presencia um apagão de 12 segundos no planeta que mudam alguns acontecimentos na linha temporal. Resultando em um acidente em que Malik é atropelado por um ônibus, coisa incomuns ocorrem ao decorrer da trama, como o sumiço de objetos ilícitos, marcas de multinacionais, histórias de fantasia famosas e bandas – em especial os Beatles. E daí que vem o grande foco da trama do filme Yesterday.

Os Beatles foi uma das bandas de rock britânico dos anos 60 mais famosa do mundo, cujas músicas são tocadas com frequência desde então. Formada por quatro integrantes – George Harrison, Ringo Star, Paul McCartney e John Lennon – “Let it Be”, “Hey Jude” e “Something” são alguns exemplos de canções que mexem com as pessoas até hoje. Difícil encontrar alguém que nunca ao menos tenha ouvido falar do grupo. No filme, após recuperar-se do acidente, Jack toca alguns acordes de uma das canções da banda e se dá conta de que ninguém lembra deles. Seus LPs da banda sumiram, assim como qualquer informação relacionada a eles na internet. Malik tenta registrar a maior quantidade de informações que lembra das músicas, arriscando um retorno a carreira musical com um repertório que não é dele.

Embora não seja explicado ao certo o que ocorreu no mundo, podemos perceber que houve um Efeito Mandela. Esse efeito descreve uma distorção de memória em grande escala, em que muitas pessoas lembram em detalhes de algum evento que, naquela realidade, não ocorreu ou se sucedeu de maneira alternativa. Esse acontecimento leva o nome de Mandela pelo motivo de um grande número de pessoas, inclusive Fiona Broome, uma das primeiras pesquisadora a utilizar essa denominação, ter lembranças vívidas do líder sul-africano Nelson Mandela ter morrido na prisão de Robben Island nos anos 80, e não de problemas respiratórios em sua casa em 2013.

Outros exemplos muito conhecidos em nossa realidade do Efeito Mandela é sobre o ator Patrick Swayze, que morreu de câncer no pâncreas em 2009, mas muitos lembram dele ter se recuperado totalmente. Do “Homem Tanque”, um protestante chinês não identificado na Praça Tiananmen, em 1989, que ficou conhecido por enfrentar uma fila de tanques de guerra – embora ele não tenha morrido naquele momento, muitos lembram dele ser atropelado pelos tanques. Na geografia, como muitos lembrando que Sri Lanka fica no sul da Índia, e não a sudeste, como está nos mapas. E também na área do entretenimento, como muitos lembrando do robô C3PO de Star Wars sendo completamente dourado em “Uma Nova Esperança”, no lugar de possuir uma perna prateada. Há até um episódio de Arquivo X que brinca com esse efeito, mostrando uma linha alternativa de acontecimentos da trama (11×04 – A Arte Perdida de Suar na Testa). 

Uma das teorias é que isso ocorre quando pulamos de linha do tempo, o que seria a explicação do “apagão” de vários segundos em Yesterday.

Quando Jack começa a tocar as músicas dos Beatles, a “novidade” chega aos ouvidos do grande público, incluindo do cantor, também britânico, Ed Sheeran, que no filme interpreta ele mesmo. Sheeran convida Jack para fazer o show de abertura de sua turnê, que acaba rendendo vários outros. Com o decorrer da história, nos deparamos com duas pessoas misteriosas que em seu olhar demonstram que também lembram dos Beatles, assim como uma leve indignação de Sheeran pensando que ele é um compositor ruim porque Jack teoricamente consegue compor músicas incríveis em períodos curtos. Na verdade, ele não cria; ele tem acesso a um nível de criatividade que ele consegue lembrar e transformar em música, que somente 3 pessoas no planeta lembram. 

Criatividade não vem do nada, há sempre uma relação com a bagagem do ser criativo, e tudo nasce a partir de algo. Como dizia o autor Bruno Munari “das coisas nascem coisas”, como é o título de um dos seus livros. A autora Elizabeth Gilbert também fala sobre a relação entre criatividade e coragem, entre viver para trazer à tona tesouros criativos que vivem dentro nós. Malik tinha muito amor pela banda e pelas músicas, sendo que mesmo com uma mudança de linha temporal, ele não esqueceu das canções. Ele acessou um conteúdo imaginário que o resto do mundo não tinha naquela linha. Foi a união da criatividade do cérebro lógico como o emocional.

Embora a narrativa do filme siga no gênero de drama, há muitas partes engraçadas, como quando Ed Sheeran sugere transformar a frase “Hey Jude” em “Hey Dude”. Vale lembrar que em mais um caso do Efeito Mandela, muitos acham que Freddie Mercury canta “No time for losers, ‘cause we are the champions… of the world!” no final da música We Are the Champions, sendo que o “of the world” não é cantada.

Além de muito bem produzido, a trama de Yesterday traz muitas dessas reflexões dentro de um roteiro que flui e que não foca necessariamente nesses quesitos de espaço-tempo. A prioridade é trabalhar os personagens, e principalmente a questão moral de Malik estar ganhando fama por composições que não são dele, embora a maioria do mundo não se lembre disso e se beneficie por entrar em contato com essa bela forma de arte. Seria a criatividade um acesso a outras linhas de tempo? Memórias distantes em outros mundos? O filme não vai entregar essa resposta, mas vai te emocionar enquanto explora os aspectos emocionais dos personagens. Se a moralidade é uma questão grande, o amor também é. 

“A verdadeira criatividade flui a partir de um nível mais profundo – uma fonte criativa infinita dentro de vocês, e assim, as criações dessa fonte sempre são novas, nunca tendo sido manifestadas antes. A criatividade nunca é limitada à educação, status, rendimentos, trabalho, etc., pois todos estão na Fonte e são da Fonte e, portanto, todos têm acesso. Vocês nunca podem estar isentos de sua criatividade, pois ela é você e novas ideias de toda forma e variedade começarão a fluir quando vocês se abrirem e permitirem. A arte, música ou literatura criada somente com o cérebro é limitada ao que já é conhecido e é facilmente reconhecida em música ou livros pouco inspiradores. Muitos artistas aplicados e sinceros estão inconscientes deste princípio. Por acreditarem que eles criam a partir do cérebro, eles não entendem por que somente produzem o que já é conhecido com toques ocasionais de criatividade verdadeira. A criatividade é direito de nascença de todos e ela pode fluir infinitamente por um artista em formas sempre novas assim que acessada.”.

Por Sementes das Estrelas via www.onenessofall.com

Post feito por Cami e Lulu.