Quando somos colocados na visão de certo personagem logo no início do filme, durante os créditos iniciais,  já é revelado que tipo de reflexão estará sendo feita durante toda a trama: o perspectivismo. Isso é reforçado logo em seguida, quando os acontecimento do filme Superman: O Homem de Aço são mostrados novamente, sob a perspectiva de Bruce Wayne. E embora ambos estejam tentando fazer a mesma coisa – salvar vidas – suas experiências acabam os colocando numa posição oposta um do outro.

Sim, os dois só querem o melhor para a humanidade, mas um desejo de tal magnitude não se torna realidade de maneira simples. Há sempre consequências imprevistas, e essas consequências são vistas e entendidas de maneiras diferentes por diferentes pessoas. Enquanto o Superman enxerga sua luta contra os vilões de Krypton algo honrável para salvar a humanidade como um todo, o Batman vê todas as vidas que são perdidas no processo, além de temer que tamanho poder possa ser usado contra os cidadãos do planeta Terra. Da mesma forma, enquanto o Batman luta para reduzir a criminalidade de Gothan, o Superman questiona seus métodos e moralidade para atingir seus objetivos. Cada um considera que suas ações estão corretas, mas que as do outro são perigosas demais e deveriam ser encerradas.

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Junto com um perspectivismo da parte da sociedade, que vamos ver mais para frente, é essa batalha de ideologias que vamos testemunhar na primeira parte do filme. Cada “herói” defendendo sua humanidade, destituindo-a do outro. Uma parábola interessante que o antropólogo Lévi-Strauss descreve inicialmente no livro Raça e História é que após a América ser descoberta, os espanhóis enviavam comissões de inquérito para descobrir se os índios que alí residiam possuíam almas, enquanto os índios observavam cautelosamente os corpos sem vida de prisioneiros brancos, para atestar se eles apodreciam. Os europeus achavam que os indígenas poderiam ser animais, e os indígenas suspeitavam que os europeus poderiam ser deuses. Muitas reflexões podem ser feitas a partir desse fato, mas uma – talvez a mais primordial – parece se destacar: a negação da generalidade da natureza humana. Se eu sou isso, é bastante provável que o outro não seja. Essa suposição é um dos grandes problemas da nossa sociedade há centenas de anos, e é o centro do antagonismo dos protagonistas do filme.

Claro que se você perguntasse para Bruce Wayne se essa é a questão, ele riria na sua cara, pois ele não considera o Superman humano. Ou seja, negar-lhe a humanidade é impossível. O que o Batman está combatendo é um alienígena que causa inúmeras mortes e que, assim como outros de sua raça, pode se voltar contra o planeta com facilidade, e destruir o mesmo tão rápido quanto. O interessante é que mesmo Bruce não considerando o alter ego de Clark Kent como humano, ele lhe projeta características ditas como “natureza humana”; como o fato dele ser perigoso por possuir uma arma, um poder, grandioso. É a natureza humana que alguém use essa arma contra aqueles considerados uma oposição. E assim como um “bom líder/visionário”, o Batman ataca antes que o outro possa ser um problema maior. Ele ataca o ícone do Superman, sem nunca considerar que esse ícone possa ser uma pessoa real, com uma família, amigos e sentimentos.

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Não dá pra defender as ações de Bruce. São pensamentos assim que continuam causando guerras desnecessárias (considerando que alguma é necessária) e vários preconceitos. No entanto, Clark Kent também não se demonstra superior a isso, também enxergando o Homem-Morcego como um ícone amoral, o qual age como quiser escondido na escuridão da noite e marca aqueles que determina ser maus. Ele também não pensa que pode existir uma história real por trás da máscara do vigilante, e dá um ultimato para o Batman sem maior reflexão ou conhecimento.

O Batman quer salvar vidas e impedir vilões. O Superman quer salvar vidas e impedir vilões. E um não reconhece o objetivo do outro, não reconhece que são iguais. O morcego indaga se o homem em azul e vermelho sangra, se ele possui um corpo. O homem de aço levanta vôo e olha para baixo para um animal sem alma. Como afirma Eduardo Viveiros de Castro em Metafísicas Canibais, “O favorecimento da própria humanidade às custas da humanidade do outro manifesta uma semelhança essencial com este outro desprezado: como o outro do Mesmo (do europeu) se mostra ser o mesmo que o outro do Outro (do indígena), o Mesmo termina se mostrando, sem se dar conta, o mesmo que o Outro”.

Mas o que é a humanidade que tanto estamos discutindo? O que é ser um homem? O que é ser um herói? A segunda parte do perspectivismo envolvido no filme é o da sociedade, o de um conjunto de pessoas. O Superman vira alvo da mídia e do senado após ser acusado de causar a morte de várias pessoas de uma aldeia. Suas ações começam a ser questionadas. Mas não questionadas de uma maneira lógica; questionadas a partir de conceitos considerados naturais e imutáveis. A sociedade, de uma maneira geral, peca em perceber que seus conceitos são construídos, e não “naturais”. Que eles são pequenas caixas-pretas construídas que apenas parecem concretas, mas não são justificativas implícitas. Ele está sendo julgado por não ser a figura ideológica do Herói. Ele está sendo acusado de não ser humano, e sendo julgado por seus “erros humanos” novamente.

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É muito legal como o filme mostra várias opiniões que estão repercutindo na mídia. Muitas baseadas naqueles conceitos ideais imaginários, mas algumas embasadas numa reflexão maior, como a opinião de uma das celebridades que aparecem na trama como elas mesmas. O astrofísico faz exatamente essa afirmação, que não podemos condenar o outro por não preencher nossos quesitos figurativos. Antes de dizer que ele é bom, ruim, homem, herói, assassino, deus ou soldado, precisamos realmente analisar o que significa essas palavras, e se qualquer um de nós poderia atingir esses níveis de idealismo.

Essa é a parte arrastada ou enrolada que está causando muitas críticas negativas. A segunda parte da trama foca mais na luta literal que todos os filmes de super-heróis precisam ter. Digo isso sem desmerecer essa parte, porque cá entre nós, ela é bem divertida e orna com a história sendo contada. É uma parte necessária, mas a primeira também é.

Fui assistir o filme com um pouco de medo. Achei que iriam aparecer muitos personagens para pouco tempo de trama, e que tudo seria tratado superficialmente e vamos pra batalha. Que surpresa agradável que tive. Além de todo o trabalho visual muito bem executado (leia nossa crítica aqui), somos presenteados com um roteiro denso que nos permite refletir aspectos daquele universo e do nosso (porque um é sempre espelho do outro. Não tem como fugir disso). Nessas questões sociais, o roteiro mandou bem.

Em momentos em que a luta do “mundo civilizado” contra o “não-civilizado” está em voga, em que governantes fazem discursos cheios de preconceitos e ódio para milhares de pessoas e que as ideologias não estão suportando seu próprio peso, é importante um blockbuster abordar essas questões. É importante que as pessoas saiam do cinema discutindo a trama, e trazer essa discussão para o nosso mundo. É algo que precisamos falar sobre, e é legal que seja o Batman e o Superman que nos possibilitem isso. Temos que começar a entender e aceitar as pessoas como elas são, e não como gostaríamos que fossem. E a comunicação é essencial para isso, mesmo que muitos queiram detonar esse diálogo.