Mary Poppins é um filme norte-americano de 1964, de fantasia, comédia musical e infantil, distribuído pela Walt Disney Productions, dirigido por Robert Stevenson, e com roteiro baseado nos livros homônimos de Pamela Lyndon Travers.
A história do filme se passa em 1910, em Londres, onde o banqueiro Sr. Banks (David Tomlinson), um homem frio e rigoroso com Jane (Karen Dotrice) e Michael Banks (Matthew Garber), seus filhos travessos, não consegue manter uma babá, pois elas desistem facilmente do emprego em virtude da dificuldade de cuidar das crianças.
Porém, certo dia, enquanto Sr. Banks escreve um novo anúncio de jornal procurando novas babás com sua esposa, Srª Banks (Glynis Johns), sua filha Jane aparece lhe entregando uma carta descrevendo a babá perfeita, a qual seria aquela que desse atenção às crianças sem simplesmente passar ordens e impor regras. Ou seja, que não seja mandona, mas gentil, pois assim as crianças também serão. Sr. Banks fica inquieto e irritado com tamanha “bobeira”, picotando a carta e jogando-a na lareira. De toda forma, magicamente a carta chega nas mãos de Mary Poppins (Julie Andrews), que com seus poderes e seus amigos, transformará a vida da família, com muita música, magia, compaixão e diversão!
Embora o filme se inicie com essa trama simples, sua intenção é tratar e criticar diversos aspectos sociais pela forma “fantasiosa Disney” de ser. Ainda, é importante destacar que o filme inovou em diversos aspectos cinematográficos, os quais ainda se encontram bem satisfatórios, servindo de inspiração até hoje.
AVISO DE SPOILER: apesar do filme possuir 54 anos, fica raso realizar uma análise de Marry Poppins sem dar spoilers, pois parte primordial do filme é o seu debate. Então se você ainda quer ver esse clássico antes de seu novo filme O Retorno de Marry Poppins, estreado em 29/11/2018, sugerimos parar por aqui. Porém, caso queira mais contexto para apreciar melhor a sua nova obra, sigamos em frente!
Já de início, o contexto da angústia das crianças pelas babás e pela carta junto a contínua troca dessas babás evidenciam uma problemática na criação de filhos pela completa ausência da participação dos pais – ditado pela figura patriarcal do Sr. Banks, suprimindo a opinião de sua esposa – na vida e crescimento de seus filhos, e na consequente terceirização dessa responsabilidade por meio de padrões de rigidez extremada passadas às babás pelo próprio Banks. Em contrapartida, as crianças descrevem a babá perfeita – ou melhor: a criação perfeita – pela carta, contrapondo a opressão e a educação através do medo pelo desejo de alguém alegre, disposto, amável, meigo, gentil e que os ame como filhos ao invés de odiá-los e dominá-los, o que será materializado com Mary Poppins e a sua forma de agir.
Ainda nesse contexto, diversos pontos menores são levantados nos diálogos. Após a contratação de Mary pelo Sr. Banks, ainda que a contragosto, sua esposa lhe diz que ele fez uma boa escolha, pois ela teria se atrapalhado toda no processo. Isso demonstra a visão retrógrada da mulher feliz e submissa as regras patriarcais que tomam todas as decisões importantes e que remetem o erro sempre à mulher, visto que o Sr. Banks sempre culpava a sua esposa pelas falhas e consequente dispensa das babás, pois para ele, a babá mais correta deve se comportar quase como um general na disposição de regras e formas de conduta, uma percepção em evidente contraste à contratação de Mary Poppins.
Muito embora a Srª Banks aja dessa forma com o marido, ela transpassa diversas condutas e incentivos às mulheres de terem uma posição mais ativa na sociedade. Essa postura é ligada ao movimento sufragista, que gerou campanhas realizadas no século XIX em prol das mulheres inglesas e americanas para garantir-lhes o direito do voto e participação política. Fato que ocorreu da mudança das mulheres que se mudaram da vida do campo para as cidades, para então às fábricas.
Esse momento histórico trouxe conscientização dos direitos femininos estendendo para a luta contra a escravidão. Um início de ideia de mulheres modernas e a frente de seu tempo é muito presente tanto na Srª Banks quanto principalmente em Mary Poppins, cujas visões de encarar a vida é muito comum de se imaginar hoje em dia, porém foi algo inovador e até transgressor na época. Por tal razão, não é improvável dizer que muitas mulheres se inspiraram nas personagens para serem o que são hoje. Afinal, por conta do desejo de viver no mundo de uma forma diferente, alegre e consciente, é que é preciso pensar e agir de maneira diferente.
Mary então, para começar o bom trabalho, parte para o incentivo das crianças a arrumarem seus quartos com alegria ao lhes falar que em toda tarefa há uma forma de encontrar diversão, pois tudo depende do ponto de vista, usando assim de sua mágica para organizar rapidamente o quarto, impressionando as crianças e as fazendo, por um espanto de surpresa, a auxiliar em toda a organização. Mary age então com muito amor, empatia e carinho, frisando uma frase de sua canção: “um pouco de açúcar no dia”, para assim aliviar essa tarefa conforme a forma como olhamos para ela. Uma forma “mais doce” de encarar um problema, então, pode mudar tudo. Pode ajudar a ver a vida de outra forma, transformar, transmutar, mudar a visão e as atitudes.

O incentivo certo as fazem ver a tarefa com mais leveza e fluidez, permitindo a organização e execução da tarefa como num passe de mágica!

Para ver o vídeo clique aqui. Essa cena foi impressionante para a época, sendo uma das grandes influências. Trabalho que deve ter demorado para ser realizado, mas que valeu muito a pena!
Assim, temos um claro incentivo a quebra de crenças limitantes de que tudo é chato e maçante, e que mudando o pensamento a respeito das coisas, elas podem se tornar mais agradáveis de serem lidadas. Mas claro, sempre estimulando o raciocínio sem perder a doçura e ludicidade infantil.
Outra quebra de crença limitante ocorre com os desenhos de rua por Bert (Dick Van Dyke), feitos com giz, em aspecto visual a mão (handmade). Num primeiro momento, são apenas artes de um artista de rua, mas com a magia e incentivo de Marry Poppins, ela, Bert e as crianças entram em uma das pinturas, viajando por um mundo rico de imaginação e entusiasmo que mistura animação em desenho (cartoon) com atores reais, uma forte característica de identificação da obra. A construção dessa cena ainda surpreende, dado o primor na construção e junção das cenas reais com as animadas. Novamente, e em pouco tempo, o filme surpreende e inova na forma de contar sua história ao telespectador.
Música, dança e cultura ajudam a ver a vida com outros olhos: olhar a frente e com criatividade. A visão aberta que elas trazem aos seres humanos assusta os tradicionalmente fechados que se sentem ameaçados pelas manifestações de arte que trazem reflexão e questionamento.
Logo após esse passeio, acontece uma passagem curiosa, mas memorável: a visita ao Tio Albert (Ed Wynn). Nela, nos deparamos com a inusitada situação de vermos Albert flutuando em sua sala de estar, enquanto mal consegue se explicar e conversar com Mary por não conseguir parar de rir! Perguntas do por quê daquele desfecho são inúteis, restando apenas, juntar-se ao Tio Albert. É quando Bert e as crianças começam a rir e passam a flutuar junto a Albert.
É estranho mesmo, mas é porque a mensagem é simples demais para tanto enredo: rir te torna mais leve e propenso a lidar melhor com os problemas da vida. Mas além de apenas rir, ter com quem contar para conversar e acalmar a mente. Nos dá leveza e nos ajuda a seguir adiante. Por outro lado, quando começam a passar mensagens de despedida e realidade, ficam mais tristes e gradativamente voltam ao chão, evidenciando assim a mensagem contrária: se preocupar demais o torna pesado e menos propenso a lidar com a vida. Não deixe que os sentimentos te dominem demais, mas também os respeite nas lições deles tiradas.
Adiante, o filme passa a tratar da problemática da vida adulta e de seu cotidiano, pelo enfoque dado ao Sr. Banks e ao seu trabalho no banco. O Sr. Banks é a figura do pai pelas condutas de ordem, firmeza e disciplina extrema. Sempre sério e preocupado. Quer passar tais responsabilidades e formas de pensar a todos – até seus filhos, mesmo que ainda crianças – trabalhando a cabeça das pessoas para sempre lucrarem (melhor ainda se ele lucrar junto!). Tais condutas estão ligadas ao estereótipo “quadrado”.
Assim, para enfim fazer seus filhos enxergarem a ordem, decide levá-los ao banco para que evitem ter mais “ideias femininas”. Na ida ao banco, Michael avista uma senhora humilde alimentando pássaros, tal como na música cantada por Mary em cenas anteriores e incentivando a alimentar os pequenos animais. Não apenas alimentar, mas demonstrar que se importa e que ajudar o outro muda não só quem está necessitado como quem está ajudando, uma mudança que vem de dentro e que traz muita consciência de coletividade e humanidade.
“Come feed the little birds, Show them you care. And you’ll be glad if you do.”
“Vem alimentar os passarinhos. Mostre a eles que você se importa. E você ficará feliz se você o fizer.”
E querendo ajudá-la a comprar comida, retira tudo o que tem de seus bolsos: 2 centavos. Isso gera forte indignação em seu pai e seus colegas de trabalho, pois ainda que sejam míseros 2 centavos, o dinheiro não deve ser gasto dessa forma, que por eles, é taxada como irresponsável, devendo, desde logo, se investir para gerar lucro, acuando as crianças com assuntos sobre investimentos e bolsa de valores, afirmando que o aumento de status gera o aumento da riqueza.
A mensagem passada com esse alvoroço é de que a riqueza financeira não é tudo, e a riqueza do amor e da compaixão que as crianças aprendem com Mary Poppins é muito mais valiosa do que qualquer dinheiro no banco, o que nesse exemplo é o valor do gasto pessoal, como dar esmola visando a humanidade e não a perda econômica por simplesmente dar dinheiro. Bert, o artista de rua, é contagiantemente feliz pelo gosto que tem no que faz mesmo não tendo muito dinheiro. Suas vestes e dia a dia evidenciam isso. Por outro lado, o Sr. Banks ainda que sério em suas condutas, trabalha duro sem levar problemas de trabalho para casa, embora carregue uma expressão séria e uma postura tensa. Será que ele é sério assim por essa razão? Afinal de contas, dialogar e ter com quem contar nos alivia. Ainda mais se rirmos, não é mesmo?
O alvoroço criado por Michael é tanto que todo o banco passa a entrar em desespero, com cada setor fazendo o que entende ser mais adequado gerando dessa forma sucessivos problemas de comunicação, representando assim a crise financeira. Consequentemente todos os clientes passam a querer sacar seu dinheiro, em episódio semelhante ao que ocorreu com a Crise de 1929, popularmente conhecida como “A Grande Depressão”, em relação a grande recessão econômica da época. Tudo porque os investidores majoritários não queriam devolver os 2 centavos de Michael, e porque a notícia do “mau investimento” se espalhou. Uma crise maluca por pensamentos excessivos de adultos e suas bolhas em cima de 2 centavos.

A esquerda, Banks e seus colegas confrontando Michael. A direita, investidores desesperados atrás de seu próprio dinheiro!
Em contraponto a tamanha bagunça, Bert conversa com as crianças dizendo a elas que todo pai precisa de ajuda, pois o pai deles estava precisando fazer tudo sozinho no trabalho, além de se auto defender dentro da visão quadrada e retrograda de ser da época, algo que muitas vezes vem de cima (dos superiores hierárquicos). Bert incentiva as crianças a pensar que a ajuda delas é necessária, pois não há quem cuide do pai deles. Na sequência, Bert leva-as a um passeio pelas chaminés e partes escuras e densas da cidade, chegando ao final em um ponto alto da cidade no qual proporciona uma bela vista da cidade. Pode-se interpretar esse passeio como os momentos obscuros e os caminhos tortuosos da vida, que fazem parte da nossa construção pessoal, mas que no final nos recompensa com uma conquista, a qual é representada no filme pela bela vista: uma cena ampla em cenário aberto mostrando a beleza e a imensidão de uma cidade ao entardecer.
No final desse dia de expediente, o Sr. Banks recebe uma ligação de seus chefes solicitando sua presença ao banco mais a noite. Em ar de tristeza pela possível perda do trabalho “gerada por seu filho”, canta que Mary Poppins só lhe trouxe caos quando tudo estava organizado. Bert então, que estava a passar por perto, revida ao cantar que as coisas saíram do controle por causa da desatenção dele com os demais ao seu redor, como a família e os filhos.
Quando Banks então se prepara para voltar ao banco, Michael devolve os 2 centavos a seu pai desculpando-se pela confusão, comovendo-o com a pergunta: “Isso ajuda a consertar as coisas?”. Ao chegar então ao banco, Banks é duramente criticado pela irresponsabilidade de seu filho ter causado caos ao banco (ou seja: 2 centavos mau investidos), sendo então dispensado. Em seguida, Banks ao perceber que sua realidade havia se desfacelado, ao tentar se defender, mexe em seu bolso e ao identificar os 2 centavos devolvidos por seu filho, sai de si passando a se comportar de forma eufórica e despreocupada com as regras que tanto regem aquele local, por ter finalmente percebido as reais intenções de carinho de seus filhos. Por fim, Banks conta uma piada do “perna-de-pau de Smith” – anteriormente contada por James e que seu pai não viu graça – sendo o único a rir, para por fim sair do local.
Essa construção do caos em ambiente de trabalho e a quebra de paradigma de Banks ao ser dispensado nos mostra o quão nocivo e invisível pode ser o cotidiano da vida profissional, tanto pessoal como familiar. Enquanto Banks possuía convicções de disciplina, trazida por seu trabalho, e enquanto tal forma de agir lhe rendia pelo trabalho status e riqueza a sua família, pensava estar tudo bem. Porém, não conseguia perceber que tais condutas não traziam as mesmas conquistas em seu ambiente familiar, o que só passou a ver após ter sido removido da zona de conforto em que vivia, gerada por um ato único que desconsiderou toda a sua trajetória até então, e que estando fora dela, nada mais daqueles pensares e agires importavam tanto, alterando assim, verdadeiramente, a sua percepção de mundo.
Mary Poppins então decide ir embora por seu objetivo ter sido realizado: a “mudança de vento”, se referindo a alteração de percepção de Banks, que mudou sua concepção de mundo, passando a curtir mais os seus filhos em uma cena feliz no parque central da cidade. Ainda no parque, Banks encontra um colega de trabalho, filho do chefão do banco. Ele diz que a piada do “perna-de-pau de Smith” fez seu pai morrer de rir, literalmente, fazendo-o sucessor do cargo, e que por tal razão, poderia readmitir Banks. Esse rápido diálogo evidencia que todos encontram-se mudados para melhor agora: tanto sociedade como indivíduo.
O filme, portanto, além de conter diversas mensagens marcantes e bem trabalhadas, também apresenta efeitos cinematográficos incríveis que surpreenderam a época e que influenciam até hoje, tais quais: vários e bons ângulos de câmera; quebra da 4ª barreira, com músicas que conversam com o telespectador; palheta de cores sempre condizente com o humor da mensagem abordada; bom uso de luzes; remoção de objetos grandes da pequena bolsa de Mary Poppins; estalar dos dedos para arrumar o quarto; o reflexo de Mary no espelho falando com ela enquanto Mary fica parada em frente dele; subir e descer o corrimão sentada (verdadeiro clássico!); pular dentro de uma pintura; a mistura entre atuação real e desenhos com fluidez; pessoas e objetos diversos flutuando com as risadas do Tio Albert; escadas de fumaça; dentre outros.
Por tamanha responsabilidade intelectual e primor técnico, o filme conquista a nota máxima de 5 cookies!
Esse texto foi feito em conjunto por Lulu Gabriella e Dorival Mores.