Por: Yuri A.F. Marcinik
________________________________________________________________________________________________
Filme: Corrente do Mal
Ano de lançamento: 2015
Gênero: Terror
Direção & Roteiro: David Robert Mitchell
Elenco: Maika Monroe , Olivia Luccardi , Keir Gilchrist , Lili Sepe , Bailey Spry , Jake Weary , Daniel Zovatto
Cinematografia: Mike Gioulakis
Trilha Sonora: Rich Vreeland
Montagem: Julio Pérez
Design de Produção: Michael Perry
Figurino: Kimberly Leitz
O filme Corrente do Mal (It Follows no título original) conta a estória de Jay (Maika Monroe), que após ter sua iniciação sexual, descobre-se portadora de uma espécie de maldição, na qual uma suposta entidade adere o corpo de qualquer pessoa próxima a ela (seja espacialmente ou afetivamente) e busca a sua morte. Tendo descoberto isso, após certa relutância e descrença, a jovem inicia uma fuga por sua vida junto a seus amigos.
Naturalmente, essa não é uma das premissas mais originais, visto que poderia tanto descrever um Slasher movie* da década de 80, quanto um terror mockumentary* pós Bruxa de Blair (1999). Mas o charme, e diferencial, de Corrente do Mal, reside em dois aspectos:
1º- Subverte algumas lógicas e padrões sexistas dos filmes antigos, colocando como personagem principal justamente um arquétipo que costuma servir de bucha de canhão para violência explicita gratuita: A “ex-virgem”
2º- Possui uma narrativa muito mais sensorial e imagética do que a maioria dos terrores atuais, tendo como grande trunfo, uma empírica cinematografia.
Porém, o que o torna digno de atenção e apreciação, é o fato de que ambos os pontos estão sempre a serviço da narrativa e suas ideias/temáticas.
>>> Atenção: spoilers a seguir<<<
Entretanto, quais seriam as tais ideias/temáticas do longa-metragem? Basicamente, Corrente do Mal é um filme sobre amadurecimento e transição entre adolescência e fase adulta; mas mais do que isso ele aborda como o sexo em geral, e banalizado por jovens é visto como algo repulsivo ou condenável perante os padrões sociais, especialmente quando realizado por pessoas do gênero feminino (vide a escolha por uma protagonista feminina).
A entidade perseguidora pode tanto ser encarada como uma materialização de tal fúria coletiva com ansiedade de punição, como uma alegoria direta para DSTs, uma vez que a maldição é passada através do ato sexual e consequentemente leva à morte seu portador, a menos que este à repasse para outra pessoa.
Dizem os boatos que M. Night Shayamallan (diretor de O sexto sentido e Sinais) após assistir o longa em questão, imediatamente contatou o diretor de fotografia Mike Gioulakis para que o mesmo trabalhasse na cinematografia de seu mais recente filme: Fragmentado (2017). Tal esforço súbito do veterano cineasta é mais que compreensível, visto que o trabalho apresentado na obra de David Robert Micthell compreende a visão deste e a ilustra majestosamente em tela.
Para isso, além de usar de outros artifícios do universo das telonas, que por hora não convêm detalhar, ele divide em 6 cores as emoções/sensações principais do filme, encarregando cada uma de transmitir/antecipar sutilmente o estado de espirito dos personagens, ou especificamente, o que os aguarda. Em essência, eis os significados e situações em que cada cor é usada:
Verde: Usada principalmente no início da projeção, tal cor simboliza principalmente sensações ligadas a segurança, estabilidade, alivio momentâneo e etc, remetendo a um dos significados comuns de tal cor em nossa cultura popular, a esperança.
Um momento oportuno onde a cor mostra seu significado é quando Jay e seus amigos vão à procura do rapaz que lhe passou a “maldição”. Sentados na grama e conversando com o sujeito, este que se mostrando paranoico, demonstra o tempo inteiro uma postura alerta e evasiva para o que está em volta, afim de descobrir se não há ninguém em seu encalço. Em dado momento ele cisma que um homem, que está passando em volta, é um possível “controlado” pela entidade, causando certo pânico no grupo. Tal pensamento mostra-se errôneo, sendo apenas um transeunte comum. Os personagens não tinham noção da ausência do perigo, mas o público, sensorialmente já sabia que algo nada aconteceria visto que a locação esbanja a cor verde, o que remete a calmaria do início da projeção, onde a cor é mais saturada.
Vermelho: Ao contrário do que se pode imaginar, o vermelho não é utilizado como é normalmente esperado, em momentos de tensão, violência ou emoções catárticas. Ele é utilizado como uma dica de eminencia de perigo, quase sempre sem chance de escapatória ou esquiva, semelhante a uma sinalização de transito.
Um dos primeiros exemplos de seu significado ocorre logo após Jay ter sua iniciação sexual, onde a moça contando para seu companheiro seus sonhos de criança, toca de leve uma pequena vegetação e assim vemos suas unhas vermelhas. Quando menos esperava, ela é surpreendida pelo companheiro que a desmaia através de um pano. Futuramente ele a explica como funciona a maldição e o porquê de ela precisar passar para outra pessoa, visto que se um daqueles que a hospedam morrerem, a maldição volta para o portador anterior.
Tal cena mostra a transição da situação aparentemente segura e sob controle pela qual a personagem passava, através do uso da cor verde do pequeno arbusto, e como o perigo a atingiu sem que ela se desse conta.
Amarelo: Contrariando as expectativas, o amarelo é que ilustra os momentos de caos e violência do filme. Usando a vergonha que comumente associamos a cor (basta ver as expressões “sorriso amarelado” o “amarelou” para compreender a alegoria), tal cor casa organicamente com o slut shamming* presente no subtexto da obra, visto que os acontecimentos onde a cor está presente são sempre dignos de se horrorizar, ou de guardar uma profunda vergonha.
Um exemplo de cena onde a cor demonstra seus significados é na primeira cena onde Jay é atacada por um dos comandados pela “entidade”. Nela a protagonista sai de seu quarto por não conseguir dormir e vai para sala de star, onde um amigo se encontra. Reparem como a luz amarela do abajur emana próxima a ela, não demora para que esporádicos “comandados” apareçam a seu encalço e assim concretizem a tensão antecipada pelo público.
Rosa: Como é uma cor que usualmente remete a delicadeza ou fragilidade, tal tingimento é usado em ocasiões parcas, mas pontuais, como simbolismo para uma ingenuidade muito mais movida por esperança do que pelo conhecimento prévio dos personagens.
Um claro exemplo disso é o frame abaixo, onde Jay e seus amigos fogem para uma casa de verão de um deles. Tal cena mostra Jay olhando para o horizonte através de uma janela enquanto veste um shorts rosa, expressiva composição auxiliada pelo contexto, nos mostra como aquela garota tem esperança que a maldição não a siga até ali, mesmo sabendo que ela pode chegar a qualquer lugar, através de qualquer pessoa.
Azul: Devido a cor ter significado diferente para a protagonista e os demais, embora sendo interligados, voltarei a aborda-lo posteriormente, mas por agora, o leitor deve saber apenas que ele representa no geral, receptividade para a contração da maldição e consequentemente um magnetismo para o perigo.
Um exemplo disso é o figurino da personagem de Lili Sepe que interpreta Kelly, irmã de Jay; a qual no início da projeção usa vestes comumente em tons cinzentos ou pretos para ilustrar a neutralidade/apatia de suas motivações e opiniões. Após a continua convivência com os integrantes do grupo de amigos, migra para tons azuis (seja em elementos de cena também), representando sua aparente receptividade sexual para com um dos membros do grupo.
Roxo: Comumente utilizada como uma cor que indica a espiritualidade, aqui a coloração, que sendo derivada da mistura entre vermelho e azul, ganha um significado derivativo dessas mesmas cores. Sua particularidade costuma estar presente em figurinos, ou elementos de cena, próximos a personagens que tem noção do perigo, mas se mostram receptíveis ao mesmo (azul da receptividade + vermelho do perigo eminente), causando assim tensão pela falta de certeza do público perante as intenções dos personagens.
O melhor exemplo é o personagem de Keir Gilchrist, Paul, que mesmo presenciando tragédias que acontecem em decorrência da maldição, anseia por copular com a protagonista. Como o roteiro o molda dubiamente, apenas após o desfecho da trama que temos a certeza de, se ele o faz por egoísmo, ou se o faz para livrar Jay da maldição. No frame em questão o fato de suas calças serem roxas indica muito das intenções do personagem.
Obs: Há um uso frequente da cores branca e preta, mas seu significado apresentam uma obviedade que dispensam maiores explanações, limitando-se a representarem ou total falta de noção/conhecimento de um personagem sobre algo, ou algo irreversível.
Como mencionado anteriormente, a cor azul possui mais de um significado dentro do filme, um para o geral, a receptividade para o perigo, e outro para a protagonista, que será abordado agora.
Em diversas cenas a cor ganha um significado associado a liberdade, seja na cena de introdução a personagem principal, onde ela se encontra em uma piscina, seja na cena clímax do filme, onde ela também se encontra em uma piscina, mas em contextos radicalmente opostos.
No primeiro a cor ilustra a imagem que a jovem faz da liberdade como algo somente benéfico, que alimenta suas ilusões sobre experiências sexuais. A piscina por mais que aparente ter largo comprimento, possui as bordas visíveis o que apequenam seu tamanho, e mais ainda o da personagem, ilustrando assim suas limitadas noções sobre sexo e suas consequências.
Aqui a cor azul adquiri uma tonalidade mais clara e “dócil” visto que o ato desencadeador da trama ainda não foi consumado, mas sim mentalizado, o que gera consequências presumíveis, embora não para a protagonista, que em sua falta de vivência não tem a capacidade de prever o que está para acontecer.
No segundo caso, após contrair a maldição e passar por diversos outros perrengues em decorrência das tentativas de fugas desta, em contexto radicalmente tenso e temeroso, ela se encontra em uma piscina para enfim chamar a entidade a fim de que ela e seus amigos possam focar em uma de suas aparências, e assim sendo, elimina-la de vez. Tal cena demonstra o amadurecimento da protagonista ao enfrentar de frente seu algoz, assumindo assim as consequências de seus atos e amadurecendo. Adquirindo tons mais sombrios e densos, a cor azul representa em completo as tensão do enfrentamento das consequências passadas, e atuais, por Jay e seus amigos
O que se passa entre essas cenas, ou seja praticamente o filme todo, é a atenuante fuga da protagonista contra os vários controlados pela maldição que se encontram a seu encalço, que sempre a encontram e sempre a fazem estar em estado tenso ou desesperado.
Em linhas gerais o azul, que está presente constantemente no longa-metragem, representa a liberdade, seu mal uso, e a tensão que as consequências disso acarretam. A já mencionada receptividade, sexual ou ao perigo, vezes simultaneamente, nos lembra de como mesmo observando as consequências, os jovens permanecem com o anseio sexual, o que salienta sua irresponsabilidade, atraindo assim, a maldição.
A narrativa de Corrente do Mal pode não ser muito original, por isso o fato de ser tão efetivo torna-se brilhante o quanto sua parte visual, moldada excepcionalmente pelo Diretor Micthell e Gioulaski, acrescenta densidade e até mesmo complexidade a um roteiro funcionalmente bom. É uma ilustração oportuna de uma das máximas do cinema enquanto arte áudio-visual: Entre contar e mostrar, sempre escolha mostrar.
________________________________________________________________________________________________
Notas de termos:
Slasher movie: Filmes onde há presença continua de um assassino atrás dos protagonistas. Ex: O massacre da Serra Elétrica, Sexta-Feira 13, A hora do Pesadelo e etc.
Slut-Shamming: Forma de estigma social aplicada a pessoas, especialmente mulheres e meninas, que são percebidas violar as expectativas tradicionais de comportamentos sexuais.
Mockumentary: Estilo de decupagem cinematográfica onde o a narrativa é filmada com o intuito de emular gravações amadoras. Ex: Atividade Paranormal, Holocausto Canibal, A Bruxa de Blair.
________________________________________________________________________________________________
Postagem colaborativa de Yuri A.F Marcinik: nascido e residente em Ponta Grossa, Paraná, atuante no ramo da fotografia e amante do cinema desde que se conhece por gente.